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 Por Fábio Rodrigues – Página 22

Foto: Gabriel Cabral/Selva SP

Foto: Gabriel Cabral/Selva SP

Embora desgastadas pelo tempo, as narrativas sobre um Brasil manso e acolhedor com as diferenças sobrevivem e são invocadas para maquiar a secular dificuldade em conviver com o diverso

Composta em 1939, a emblemática Aquarela do Brasil , que se tornaria a matriz para o samba-exaltação [1], representa, logo de cara, o Brasil como um “mulato inzoneiro”. Ainda que fique meio escondida por trás do vocabulário pouco acessível de Ary Barroso, há – nesse verso e nessa canção – uma concepção precisa de brasilidade destilada em conformidade com conceitos que haviam entrado no campo de ideias poucos anos antes. Especialmente o de democracia racial desenvolvido com base em estudos de Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala e o de homem cordial introduzido por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil.

[1]  Subgênero do samba caracterizado por letras ufanistas. Foi usado como propaganda nacionalista pelo Estado Novo e governos subsequentes

Nessa “terra de samba e pandeiro” composta por Barroso e imaginada por outros tantos, há a promessa de uma integração harmoniosa dos diferentes pela sentimentalidade. É justo lembrar que, na década de 1930, o mundo assistia à ascensão do nazifascismo e a Europa marchava para a Segunda Guerra Mundial. Nesse contexto, não é difícil entender por que o Brasil parecia tão bem ajustado. Há quem ainda defenda essa imagem.

No fim do ano passado, o sociólogo italiano Domenico De Masi lançou 2025 – Caminhos da Cultura no Brasil, no qual ele, pessoalmente, transparece uma visão bastante otimista em relação à capacidade dos brasileiros de virem a concretizar ao menos em parte essas promessas.

Contudo, para o momento, essa integração não só falhou em entregar o prometido como há sinais de que parte do Brasil prefere tratar suas diferenças na base do – para usar outra metáfora musical – “tiro, porrada e bomba” .

Para o historiador e professor da Unicamp, Leandro Karnal, a semente dessa autoimagem açucarada que cultivamos de nós mesmos começou a ser regada nos idos do Império. “Trata-se de um esforço do Estado que precisou pacificar um país que estava tomado por guerras civis no período da  Regência[2], analisa. Segundo Karnal, durante quase 60 anos de reinado, Dom Pedro II investiu no imaginário de um Brasil estável cercado por países hispano-americanos de temperamento mais esquentado.

[2]  O Período Regencial durou entre 1831 e 1840, da abdicação de Pedro I até a coroação de Pedro II. Foi um período particularmente violento, no qual aconteceram a Cabanagem, a Balaiada, a Sabinada e a Guerra dos Farrapos

Mesmo depois da Proclamação da República, esse imaginário continuou alimentado pelo nacionalismo. Essa é a opinião do sociólogo e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Almir de Oliveira Júnior. “O nacionalismo sufocava qualquer tema percebido como divisivo. Questões como a racial eram colocadas como menores em relação à construção de uma identidade nacional”, resume.

Foi dessa forma que qualquer sinal de desarmonia era logo justificado como algo restrito aos grotões mais profundos e primitivos do País ou derivado de causas externas, alheias a nosso temperamento. “Nossa violência passou a ser atribuída a ‘doutrinas estranhas’. Poderia até dizer que o nosso falso pacifismo tornou-se um elemento de unidade nacional”, completa Leandro Karnal.

Santos do pau oco

“Falso”, porque a história do Brasil é pródiga em episódios de violência quase inimagináveis. Incluídos aí, os massacres promovidos pelo Exército na  Guerra do Paraguai [3] e em  Canudos [4], ou, num exemplo mais modesto, mas não menos simbólico, na repressão ao  cangaço [5], que teve seu episódio mais marcante na chacina – e decapitação – do bando de Lampião em 1938. Em uma palestra de 2012 adequadamente intitulada “O Ódio no Brasil” [6] , o próprio Karnal lista esses e tantos outros exemplos que contradizem essa nossa autoimagem pacífica.

[3]  Travada pelo Paraguai de um lado e Argentina, Brasil e Uruguai do outro entre 1864 e 1870, foi o maior conflito armado na América do Sul. Estima-se que 75% da população masculina paraguaia tenha sido morta

[4]  A repressão estatal ao culto liderado por Antônio Conselheiro no arraial de Canudos custou a vida de 25 mil brasileiros entre conselheiristas e soldados do Exército

[5]  Forma de banditismo típica do interior do Nordeste que persistiu até o fim da década de 1930, na qual grupos de homens armados vagavam pelas cidades cometendo crimes

[6] Assista aqui

Mesmo a nossa tardia Abolição da Escravatura – o Brasil foi o último país das Américas a libertar seus escravos, no ano de 1888 – não foi resolvida da forma ordeira como as aulas do Ensino Médio fizeram parecer.

Em seu livro Flores, Votos e Balas, a presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Angela Alonso, resgatou a história dos movimentos civis que precipitaram a Lei Áurea. “No segundo semestre de 1887, o País passou perto de um confronto aberto entre abolicionistas e escravistas”, explica.

A temperatura já vinha subindo à medida que a luta abolicionista adotava a desobediência civil como tática, ao promover fugas de escravos. Mas o caldo só entornou mesmo depois que o Exército passou a apoiar a causa. “Foi quando começou a desistência em massa dos escravistas”, diz Alonso.

Sem esse “incentivo”, é bem provável que a escravidão persistisse por mais tempo. “Mesmo no final, o escravismo ainda era rentável. Há cálculos indicando que a dinâmica econômica, deixada por conta própria, precisaria de décadas para levar à abolição”, completa. O fato de a Coroa ter ignorado solenemente propostas que garantiam um salário mínimo e a concessão de terras públicas aos ex-escravos indicava que o desejo de promover a igualdade era limitado.

Apesar disso, a mistificação plantada no império conseguiu cravar raízes profundas em nossa identidade. A ponto de a historiografia brasileira, em sua versão oficial, ter desenvolvido verdadeira fobia ao uso da expressão guerra civil para descrever qualquer um dos – sangrentos – conflitos armados ocorridos por aqui.

“Nós vivemos ‘agitações’, nunca guerra civil. Mas, se guerra civil é a entre pessoas do mesmo país, temos vivido sistematicamente episódios do tipo (…) há quem diga que a periferia das grandes cidades é uma guerra civil em curso”, avalia Karnal.

O trágico é que a fala do entrevistado nem chega a ser uma hipérbole. Na edição mais recente do Anuário Brasileiro de Segurança Pública [7], o Brasil registrou quase 54,5 mil assassinatos em 2014. “É mais do que morrem em guerras!”, indigna-se o coordenador de estudos da violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) e idealizador do Mapa da Violência [8] , Julio Jacobo Waiselfisz. “De acordo com a Geneva Declaration Secretariat, em 2007 morreu mais gente assassinada aqui do que nos 40 maiores conflitos armados aquele ano”, completa.

[7] Assista aqui

[8]  Iniciativa que, desde 1998, mapeia a violência no Brasil. Acesse.

Em uma comparação macabra, a quantidade de mortes violentas no Brasil supera a dos atentados de novembro em Paris. E por

larga margem. Enquanto o terror vitimou 130 parisienses, 155 brasileiros são mortos todo santo dia. Só não sentimos mais o golpe porque estamos insensibilizados. “Há todo um processo de insensibilização que dá por aceito que isso é um mal necessário. Criou-se uma cultura de indiferença”, critica Jacobo.

É como se houvesse menos dificuldade em conviver com a violência em si do que em falar dela. “Mostramos uma aversão muito grande em assumir abertamente nossos conflitos. Daí nossa necessidade de perpetuar esse mito de que somos um país pacífico e muito tolerante”, garante Almir de Oliveira Júnior.

“Temos dificuldade em enunciar a violência”, concorda Karnal, que vê nisso uma das expressões de uma idiossincrasia bem nacional: a hesitação de dizer “não” abertamente. “Dizer ‘não’ nos parece deselegante. Só notei isso [quando estive] na Europa”, explica o historiador.

Em negação

É para baixo desse tapete de dito pelo não dito que varremos nossos conflitos, até os mais pronunciados. Caso de nosso histórico racismo. “Nunca houve, no Brasil, uma placa dizendo ‘for whites only’ como nos Estados Unidos ou na África do Sul. Não obstante, sempre houve espaços de interdição aos negros”, prossegue Karnal.

“O Brasil não precisa de uma lei como havia na África do Sul porque todo mundo age naturalmente. É o ‘crime perfeito’”, lamenta Lia Vainer Schucman, psicóloga que se debruça sobre a questão há mais de uma década, especialmente a respeito da construção da chamada branquitude – a supervalorização do branco sobre os não brancos – na cidade de São Paulo. “O funcionamento do racismo brasileiro é complexo. Diferente do anglo-saxão, temos essa ideia de intimidade que nos permite manter relacionamentos, até amorosos, com negros sem deixarmos de ser racistas”, problematiza.

A forma como o brasileiro lida com o tema “raça” é tão contorcida que as discussões em torno do tema ficam girando em falso. “As pessoas acreditam que o racismo só é criado na medida em que falamos nele”, ironiza Oliveira Júnior, mencionando que esse é um argumento recorrente de opositores de ações afirmativas – na questão das cotas, por exemplo.

Para muitos, a negação do problema racial é um escudo contra verdades incômodas. “Para não se responsabilizarem, o mais fácil é confirmar a democracia racial. (…) Trabalhei com uma mulher branca casada com um negro, mãe e avó de negros, e vi que, para ela, era muito difícil falar que o Brasil é um país racista. Ela se sentia atingida”, pondera Schucman.

A psicóloga considera que a democracia racial acabou convertida em uma ideologia que permite negar a evidência e, até, experiências diretas que a contradigam. “Todos os estudos comprovam que há racismo no Brasil, os negros sofrem mais com a violência e vivem em condições piores, e mesmo assim as pessoas não acreditam. Elas mantêm a opinião de que existe democracia racial”, arremata.

O claro viés racial na violência brasileira talvez seja o aspecto mais dramático da desigualdade brasileira. “Se o Brasil fosse totalmente branco, a gente teria uma taxa de homicídios perto da dos Estados Unidos. Algo em torno de 10 mortes ao ano para cada 100 mil habitantes, mas, como de cada três assassinatos dois são de negros, o resultado sobe para os atuais 27 para cada 100 mil”, diz Oliveira Júnior, do Ipea.

Segundo Julio Jacobo, a situação está piorando. “Ao longo da última década os homicídios de brancos têm caído, enquanto os de negros vêm aumentando. Há um aprofundamento na seletividade”, diz. O problema é particularmente agudo entre jovens na faixa dos 15 aos 29 anos. “O jovem negro das periferias com baixo nível de escolaridade e de inserção no mercado de trabalho forma o epicentro da mortalidade violenta”, descreve.

Questão indígena

Os negros, é claro, não são as únicas vítimas. “Com os indígenas a violência é até mais virulenta”, estima a pesquisadora Tânia Pacheco, coordenadora-executiva de uma iniciativa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) que mapeia conflitos ambientais . Dos quase 600 casos identificados, a maior parcela – 28,6% – envolve populações indígenas, mesmo que elas representem meros 0,4% da

população total medida pelo IBGE. “Os indígenas estão numa posição muito frágil de poder”, concorda Schucman, para quem um dos principais complicadores nessa relação vem da forma como a identidade indígena é sistematicamente negada. “Na narrativa do preconceito, os judeus são acusados de não se misturarem; já com os índios ocorre justamente o oposto, eles são acusados de se misturarem. Os índios precisam se fantasiar para serem reconhecidos”, afirma.

A violência física é o ponto culminante num processo cuja invisibilidade está firmemente alicerçada no mito da democracia racial. “Como aqui não existe racismo, você naturaliza a pobreza do negro [e do indígena]. Aí, quando se cria uma política para minimizar essa desigualdade, dizem que vai contra a meritocracia. Enquanto isso, essa associação com a pobreza é usada para justificar a violência”, sintetiza Oliveira Júnior.

No fim, trata-se de tentar manter intacta uma determinada ordem social. “No Brasil, o racismo se mistura à demofobia. A discussão sobre política racial usa conceitos ‘positivos’, como o de meritocracia, para disfarçar o horror da divisão de espaços”, diz Karnal.

Reação conservadora

A questão racial não é a fronteira definitiva dos preconceitos no Brasil. Por outros caminhos, nossas dificuldades de relacionamento também fazem vítimas entre mulheres e a comunidade LGBT (leia quadro abaixo).

Ao mesmo tempo, assistimos à ascensão de uma nova onda conservadora no plano internacional e na sociedade brasileira. “Setores cuja posição [de poder] estava sendo afetada por evoluções recentes de nossa sociedade estão reagindo. Essa reação conservadora é algo visível em nosso Legislativo, onde muitos avanços vêm sofrendo reveses”, avalia Jacobo, ao lembrar dos recentes esforços de parlamentares para afrouxar o Estatuto do Desarmamento e baixar a maioridade penal para 16 anos.

É um movimento que, embora não seja totalmente coeso, tende a incluir visões simpáticas aos velhos discursos nacionalistas – daqueles que também bebem na fonte onde Ary Barroso foi buscar o Brasil de sua aquarela. “Essa saudade fantasiosa da ditadura militar, da São Paulo dos anos 1950 e de outras épocas que são, obviamente, invenções da memória, disfarçam esse sentimento de querer evitar o debate. (…) O preconceituoso é, hoje, o clássico fariseu que usa a lei moral para disfarçar sua impotência, medos, ódios e denegações”, critica Karnal.

Eis que, durante a apuração desta reportagem, um menino de 2 anos chamado Vitor Pinto foi brutalmente assassinado bem na frente de sua mãe. Ambos índios do povo Kaingang que tinham ido passar uma temporada na cidade de Imbituba (SC), onde a mãe esperava ganhar algum dinheiro vendendo artesanato. Sem ter onde ficar, estavam abrigados na rodoviária da cidade quando um estranho se aproximou e simplesmente cravou uma faca no pesco do garoto.

À polícia, o autor negou que o crime tenha sido motivado por racismo. Ainda assim, se não fosse a discriminação, a mãe de Vitor provavelmente não precisaria ter saído de sua aldeia. O acontecimento vai ao encontro da percepção de Tânia Pacheco: “Estamos vivendo em uma sociedade ensandecida, profundamente doente; na qual prevalece a visão distorcida de que temos de acabar com o outro transformando-o em algo semelhante a nós mesmos”.

No meio desse tiroteio, fica difícil não lembrar de Querelas do Brasil canção na qual Aldir Blanc faz um contraponto cheio de ironia ao samba clássico de Ary Barroso: O Brazil não merece o Brasil/ O Brazil tá matando o Brasil.

Violência de orientação sexual e gênero

O Brasil é o país que mais mata gays no mundo, enquanto o número de mortes entre as mulheres tem salto impressionante

Uma contagem mantida há cerca de 35 anos pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) já documentou mais de 3 mil assassinatos de homossexuais por meio do projeto Quem a Homotransfobia Matou Hoje? (homofobiamata.wordpress.com). Em 2014 – último ano com dados tabulados –, foram 326 mortes. Segundo o fundador e presidente de honra do GGB, Luiz Mott, esses números colocam o Brasil no topo do nada honrosoranking dos países que mais matam gays no mundo. “Mais da metade das mortes acontece aqui. É praticamente um assassinato por dia”, informa.

Segundo Mott, o que temos visto ao longo dos últimos anos é o “crescimento chocante” dos números. A média anual de mortes que era de 127 nos mandatos de FHC – 1995 a 2002 – escalou até 310 durante os cinco anos do governo Dilma. Fruto, na opinião do entrevistado, de um processo de reação. “Quanto mais visibilidade [os homossexuais conquistam], mais os homofóbicos se radicalizam”, diz.

Também as mulheres são vítimas preferenciais. A mais recente edição do Mapa da Violência aborda justamente a violência de gênero. Em 2013 – último ano com dados oficiais – foram assassinadas 4.762 mulheres, um salto de impressionantes 252% desde 1980. Enquanto isso, o aumento populacional foi, segundo dados do IBGE, de 67% – de 118,5 milhões em 1980 para 198 milhões em 2013 – e as taxas de homicídios por 100 mil habitantes mais do que dobraram ao longo do período, de 2,3 no primeiro para 4,8 no ano da série. “A morte de mulheres se produz em âmbito doméstico, normalmente pelo não cumprimento de ‘papéis de gênero’”, analisa Jacobo.

E, se ser mulher no Brasil é perigoso, ser uma mulher negra é ainda mais. De fato, olhando apenas para os últimos anos da série – entre 2003 e 2013 –, enquanto o número de assassinatos diminuiu em 10% entre as brancas, aumentou em 54% entre as negras.