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Um grande amigo, que mora já há vários anos nos EUA, me escreveu para perguntar sobre a violência. Transcrevo “in verbis”, para utilizar a expressão cara a nossos amigos do STF: “Tenho uma pergunta para você: existe alguma explicação para a violência parecer estar aumentando (ou ao menos não estar baixando) no Brasil, já que a renda média aumentou, o desemprego diminuiu, existe mais prosperidade de um modo geral e o país está em ritmo de crescimento, com melhor distribuição de renda? Ou não é verdade que a violência está cada dia pior?”.

Antes de mais nada, precisamos definir melhor o que entendemos por aumentando e diminuindo. Essas palavras pressupõem uma comparação no tempo, de modo que, para esboçar uma resposta, precisamos antes de mais nada fixar o intervalo a que nos referimos.

Se formos cotejar os dados de hoje com os do Pleistoceno, nós provavelmente estamos muito melhor agora. Apesar do mito do bom selvagem propagandeado por Jean-Jacques Rousseau, evidências arqueológicas sugerem que os nossos ancestrais eram bem mais violentos do que nós. Um conflito entre tribos pré-históricas ceifava em média a vida de 15% dos envolvidos, podendo chegar a 60% em alguns casos. Não vemos nada nem remotamente parecido nas guerras modernas.

Já se a comparação se der, não com o Pleistoceno, mas com o mês passado, não estaremos extraindo nenhuma informação muito relevante, pois a variação natural nos números tende a ser grande mesmo num lapso de tempo muito comprimido.

Assim, considerando que o horizonte de nossas vidas não é de milênios nem de meses, mas de 70 ou 80 anos, o mais sensato parece ser proceder a uma comparação no nível de décadas. Neste caso, nosso quadro é de estabilidade desbalanceada. A crer no “Mapa da Violência”, do sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, a taxa anual de homicídios por cem mil habitantes no Brasil era de 26,7 em 2000 e foi a 26,2 em 2010.

A disparidade entre os Estados impressiona. Em São Paulo, no mesmo período, os números passaram de 42,2 por cem mil para 13,9 –queda de 67%–, enquanto em Alagoas eles saíram de 25,2 para chegar a 66,8 –aumento de 165%. (Os números não são exatamente iguais aos que vêm aparecendo no noticiário sobre a violência em São Paulo porque o “Mapa” utiliza como base os óbitos compilados pelo Ministério da Saúde, enquanto os jornais paulistas usam os boletins de ocorrência contabilizados pela Secretaria da Segurança Pública).

A primeira conclusão, portanto, é que falar em quadro nacional é complicado. Se queremos identificar causas e especular sobre possíveis soluções, faz mais sentido pensar a situação de cada Estado. Aproveito a deixa para dizer que não vou me deter sobre a atual crise em São Paulo porque já o fiz na coluna publicada na edição impressa da Folha de ontem.

Como sempre ocorre quando se trata de um fenômeno multifatorial como a violência, temos causas suficientes para satisfazer ao gosto de todos os fregueses. A turma que aprecia repressão encontra fortes indícios de que a ação policial é um importante freio ao crime. Entusiastas de comunidades têm motivos para suspeitar de que a formação de círculos sociais através de associações de moradores, igrejas e clubes esportivos seja parte da solução. Demógrafos apontam, com razão, que o simples envelhecimento populacional tem importante impacto sobre a criminalidade. O povo mais à esquerda gosta, como meu amigo, de citar fatores econômicos como renda, emprego e desigualdade. Há até quem afirme que a crescente organização dos criminosos em estruturas cada vez mais eficientes pode ajudar a reduzir os homicídios, embora não o crime em geral.

A dificuldade é separar cada um desses elementos, tentar livrá-los de possíveis “confoundig factors” (variáveis de confusão) e descobrir qual o seu peso no bolo. É uma tarefa muito perto do impossível, tamanho o grau de complexidade Escondido sob as ciências sociais. Nossas melhores esperanças residem em levantar hipóteses que pelo menos não sejam desmentidas pelas estatísticas.

Quem tentou fazê-lo e obteve certo sucesso, creio, é Steven Pinker no livro “The Better Angels of Our Nature” (os melhores anjos de nossa natureza), que já citei nesse espaço inúmeras vezes.

Analisando os dados da redução da criminalidade nos EUA, no Canadá e na Europa Ocidental nos anos 90, Pinker mostra que não há praticamente nenhuma correlação entre melhora da economia e redução de crimes violentos. Aumento da renda, do emprego e a redução do índice Gini, que mede a desigualdade na distribuição da riqueza, não têm quase nenhum impacto nos homicídios. Eles guardam, isto sim, uma modesta correlação com os crimes contra o patrimônio. E isso responde à pergunta do meu amigo.

Agora que já vimos um pouco do que não funciona, podemos ir atrás do que funciona. Pinker considera que dois fatores tiveram um papel preponderante. Em primeiro lugar, o Estado, com sua máquina repressora, se tornou maior e mais eficaz. Em segundo, a cultura de redução da violência, o processo civilizatório, para utilizar o termo cunhado pelo sociólogo Norbert Elias, que sofrera um pequeno revés nos anos 60, foi retomada.

O investimento dos EUA na repressão foi impressionante. As polícias ganharam efetivos, equipamento e novas técnicas de treinamento e abordagem. Ganhou grande popularidade a teoria das janelas quebradas, segundo a qual é possível prevenir delitos graves reprimindo pequenos atos de vandalismo.

A maioria dos acadêmicos, observa Pinker, odeia essa tese, porque ela parece dar razão aos conservadores que querem resolver todos os problemas sociais soltando a polícia em cima dos pobres. É realmente difícil saber se ela funciona de fato. As estatísticas não ajudam. Os dados são poluídos demais para saber se foi a forma de a polícia abordar o crime e não o aumento de efetivos ou qualquer outra coisa que fez a diferença.

Um estudo holandês publicado na “Science”, porém, parece dar razão aos defensores da teoria. Os pesquisadores compararam a frequência com que pessoas jogavam lixo na rua em duas situações diferentes. Na primeira, a experimental, o ambiente estava repleto de pichações. Na segunda, o grupo controle, o lugar estava limpo. A primeira horda sujou as calçadas duas vezes mais que a segunda.

O mesmo efeito na mesma proporção foi verificado em relação a um delito mais grave, que é o furto de uma carta na qual se podia ver uma nota de 5 euros. Evidentemente, isso não basta para validar as janelas quebradas, mas é o suficiente para ficarmos com a pulga atrás da orelha.

Os norte-americanos, entretanto, não se satisfizeram em melhorar o policiamento. Eles também decretaram a chamada guerra às drogas, que colocou muitos usuários na cadeia, e aprovaram toda uma família de leis bastante duras como o “three strikes and you are out” da Califórnia, que estabelece uma pena de 25 anos a perpétua para todo mundo que for condenado pela terceira vez, mesmo que o crime não seja particularmente grave.

O resultado é que os EUA se tornaram o país que mais encarcera seus cidadãos, certamente muito mais do que o que teria sido necessário para baixar a violência.

A prova é que, os índices de homicídio do Canadá, embora muito menores que os dos EUA, seguem mais ou menos as mesmas curvas e sem que o país tenha sucumbido à mesma histeria.

Outro bom motivo para suspeitar que os norte-americanos tenham exagerado está no fato de que, no crime como em quase todas as atividades humanas, vale algo próximo da regra de Pareto, segundo a qual 80% das consequências vêm de 20% das causas. Trocando em miúdos, um número relativamente reduzido de bandidos responde por grande parte dos crimes. A implicação é que, depois de um certo ótimo, se se continua a prender pessoas (que serão cada vez menos perigosas), gasta-se muito para avançar pouco na redução dos delitos. Na verdade, ao colocar sujeitos quase inofensivos em contato com criminosos bem mais eficientes, estamos ajudando a criar as chamadas escolas do crime.

O Segundo fator, o das mudanças culturais, é bem mais sutil, mas ainda assim visível. A tolerância da sociedade em relação à violência diminuiu. Direitos dos negros, por exemplo, que eram negados sem nenhum pudor até os anos 70 nos EUA, passaram a ser vistos como autoevidentes. Hoje nem o mais eloquente racista sugeriria que um afro-americano não pode sentar-se nos assentos da frente do ônibus. E, se o fizesse, correria o risco de ser linchado.

O mesmo se verificou em relação a mulheres, gays e crianças. O bullying passou de comportamento normal a novo vilão da modernidade. No mesmo pacote civilizacional veio também a ideia de que é errado resolver diferenças com recurso à violência.

A exceção, diz Pinker, são os jogos e filmes. Eles nunca foram tão violentos e, não obstante, a violência nas sociedades tem se reduzido, no que constitui uma bela demonstração de que aquelas teorias de que a TV e os videogames geram pequenos monstros estão erradas.

Isso tudo que Pinker diz, porém, vale para os EUA e o Canadá e, em alguma medida, para a Europa. E quanto ao Brasil? É difícil dizer, especialmente quando consideramos a disparidade estadual de nossos números e, no presente momento, o recrudescimento dos homicídios em São Paulo. Creio, entretanto, que esse é um fenômeno passageiro. Não interessa nem aos policiais nem aos bandidos nem ao governo manter essa situação por muito tempo. Ela, afinal, é ruim para a saúde e para os negócios de todos.

Assim, voltando à nossa escala de décadas e anos e não de meses, acredito que São Paulo pode estar seguindo o exemplo dos EUA com uma diferença de uma década, o que é quase uma norma quando se pensa em termos de mudanças culturais. Novas ideias e modas surgidas nos países centrais chegam à periferia com um certo atraso mesmo. Resta saber se essa irradiação, que parece ter também atingido o Rio, vai perdurar e chegar a outros Estados ou se vamos permanecer teimosamente alinhados a países da América Latina, que lamentavelmente se tornou a região mais violenta do mundo.