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“O que a esquerda vem fazendo nas últimas décadas é seguir brutalmente o destino de render-se, de acomodar-se, de fazer os “compromissos necessários ” com o inimigo declarado”. Esse é o espiríto de Zizek, um dos mais importantes teóricos de esquerda da atualidade

Diz-se que quando pediram a Slavoj Zizek para contar um segredo, ele teria respondido “- o comunismo vai ganhar”. A frase resume o espírito daquele que tem sido um dos mais importantes teóricos de esquerda da atualidade. Zizek é o que podemos chamar de filósofo “arrasa-quarteirão”: a palestra que proferiu no Salão Pedro Calmon da Faculdade de Economia da UFRJ, na praia Vermelha, em 2008, foi um imenso sucesso. Emir Sader relata que ao final da conferência, sob salva de palmas, disparou “– Chega! Guardem suas energias para quando chegar o comunismo”. Em 2003, na Argentina, não foi diferente: Zizek reuniu mais de dois mil e quinhentos estudantes e professores atentos durante horas, experiência magistralmente registradas no documentário Zizek! de Astra Taylor. Paradoxalmente, este ícone da esquerda é o que mais dispara críticas à esquerda atual ” o que a esquerda vem fazendo nas últimas décadas é seguir brutalmente o destino de render-se, de acomodar-se, de fazer os “compromissos necessários ” com o inimigo declarado. Representa o socialismo, porém pode seguir plenamente o thatcherismo econômico; representa a ciência, mas pode seguir plenamente o império da multidão de opiniões, representa a democracia popular verdadeira, porém também pode jogar o jogo da política como espetáculo e dos pactos eleitorais; representa a fidelidade a certos princípios, porém pode ser totalmente pragmático”. Para a esquerda local, já se disse tudo, menos que é masoquista. Agora se pode dizer.

Zizek retornou novamente ao Brasil para duas conferências: a primeira em São Paulo (21/5), no Sesc Pinheiros, integrando a programação do Seminário “Revoluções: uma política do sensível” e no Rio de Janeiro (24/05) no Cinema Odeon Petrobrás. Em ambos fez a conferência “Revoluções: quando a situação é catastrófica, mas não é grave” e o lançamento de seus dois novos livros, “Em defesa das causas perdidas” e “Primeiro como tragédia, depois como farsa”, ambos pela Boitempo. A promoção reúne entidades de peso como a FLACSO, CLACSO, Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal, PUC-RJ entre outras. Intelectual de produção vasta, sua trajetória é pouco conhecida dos brasileiros. Nascido em 1949 em Liubliana, Eslovênia, Zizek concluiu seu bacharelato em Artes, Filosofia e Sociologia em 1971 e obteve seu doutorado em Filosofia pela Universidade de Liubliana em 1985. Nos anos 70 fez parte da Escola da Eslovênia, onde estudou o pensamento de Hegel e nos anos 80 militou no movimento alternativo, chegando a ser candidato a Presidente de seu pais. Tomou contato com o pós-estruturalismo francês, estudando Jacques Lacan e escreveu uma imensa obra que inclui Porque não sabem o que fazem (1991), Goza teu síntoma!(1992), As Metastases do gozo (1994), O Espinoso Sujeito (1999), Bem vindo ao deserto do real (2003), Visão em Paralaxe (2008) e Lacrimare rerum (2009), entre outras.

O que torna profundamente atual o pensamento de Zizek é o seu trabalho sobre a ideologia. Não se trata da retomada de sua obra “O mapa da Ideologia”, conhecida dos brasileiros, mas do aprofundamento de aspectos de sua obra pouco conhecida “O sublime objeto da ideologia” (2005) em que integrou de forma original as percepções psicanalíticas da fantasia à critica marxista da ideologia. Isto lhe lhe permitiu, pela primeira vez, propor uma teoria de como funciona a ideologia no plano subjetivo “Não existe a crença comum, o que existe é a crença em que os outros crêem.” Zizek reconstrói os processos que fazem que homens, em determinadas circunstâncias, justifiquem e dêem um ar de verdade a uma mentira, numa espécie de construção coletiva . O “vamos fingir que as regras funcionam” oculta, entretanto, o fato de que as instituições no capitalismo contemporâneo estão falidas e ninguém de fato acredita nelas. Agimos como na fantasia de Papai Noel: nem os adultos, nem as crianças, acreditam mais nele. Pior: agimos assim com nossas instituições, inclusive com a democracia. A subjetividade também está sobre tremenda pressão da ideologia: cuidado, o capitalismo quer dar um significado a sua vida, diz Zizek. Ele toma como exemplo os anos que passamos consumindo publicidade, uma das melhores formas de se pensar o que acontece com nossa subjetividade. Nos anos 60, a propaganda automobilista vendia as qualidades de um carro; nos anos 70, o status que ele oferece ao consumidor para finalmente, hoje, ser a promessa de libertação da sociedade opressora. Para Zizek, o capitalismo contemporâneo é profundamente ideológico “a política desse capitalismo é a despolitização para que não haja mais uma ideologia clara.” Na sociedade de consumo (Baudrillard), a ideologia vendida é a ideologia da diversão como na frase do filme Sociedade dos Poetas Mortos “Carpe Diem” (aproveitem o dia!). Nada mais comprovador do conceito de Lacan – apropriado por Zizek – de gozo excedente, um gozo que nos suborna para mascarar os nossos problemas. A solução, para Zizek, é o retorno à noção de economia política tal como proposta por Marx: politizar a economia e é nesse sentido que Zizek mais aproxima-se de outro teórico do marxismo, Robert Kurz. A ideologia do capitalismo contemporâneo, defende Zizek, quer que acreditemos que a economia não tem nada haver com a política: ela quer uma sociedade a-política, e para isso constrói a idéia de que é besteira discutir política. Nisto reside a radicalidade de Zizek: ele quer que a democracia se garanta sem as influências das pressões de mercado. E claro que os defensores do mercado rugem sem cessar quando ouvem falar de Zizek,chamando-o de intelectual bufão.

Yannis Stavrakakis, em La Izquierda Lacaniana – psicoanálisis, teoria, política (FCE, 2010), mostra que o pensamento de Zizek consolidou-se ao longo dos últimos quinze anos, período em que a Psicanálise e a Teoria Lacaniana passaram a ser recursos importantes na reorientação da teoria política contemporânea. Essa posição, para qual boa parte dos cientistas políticos torce o nariz, origina-se no próprio pensamento de Jacques Lacan, que não foi apolítico, ao contrário, fez criticas ao american way of life, ao capitalismo americano e a sociedade de consumo, o que o levou a associar sua noção de mais-gozo à noção de mais-valia de Marx. Nesse caminho estão Zizek, Cornelius Castoriadis, Alain Badiou e especialmente Ernesto Laclau, para quem “a teoria lacaniana aponta ferramentas decisivas para a formulação de uma teoria da hegemonia”, daí a definição de seu horizonte teórico-politico em termos de Esquerda lacaniana, nítido campo de intervenções políticas e teóricas a partir da psicanálise – mas não somente com ela – parte para a critica da hegemonia capitalista contemporânea.

Em “Primeiro como tragédia, depois como farsa”, lançado simultaneamente pela Verso ( Londres) e Flamarion (Paris) em 2009, Zizek pergunta se estamos preparados para a história que se impõe sobre nossas cabeças desde os ataques de 11 de setembro. Ele mostra as manobras por detrás das ideolog
ias levantadas pela crise de 2008 e que levou bilhoes de dólares para os bancos. Para Zizek, o que é profundamente ideológico é tratar as crises do capitalismo como algo estranho ao próprio capitalismo, idéia que deseja vender a imagem de um mercado capitalista regulado de outro modo. Ao contrário, ele nos mostra cada vez mais o capitalismo sobrevivendo abaixo de terapias de choque, mercado que exige violência extra-mercado para seu funcionamento. Para Zizek, a tarefa da esquerda critica é expor as características mortais do sistema capitalista mundial. Ele sabe que há algo de pobre na sociedade e acredita profundamente que o comunismo será reinventado para sanar a sociedade. E para isso, dirige-se aos comunistas desiludidos “- não tenha medo de se juntar a nós. Você já teve seu divertimento anticomunista e está perdoado por ele. É tempo de se levar a sério de novo”. Ele vai além, mostra o mal-estar e a falta de sentido da democracia moderna e faz a pergunta paradoxal: estamos realmente vivendo em uma democracia? “A Itália de hoje é efetivamente uma espécie de laboratório experimental de nosso futuro”, diz. Sua revolta é: como é possível admitir que milhares morram de fome enquanto os bancos enriquecem com seus trilhões de dólares?

Já na obra “Em defesa das causas perdidas”, Zizek vai contra o pensamento hegemônico que vê a democracia liberal, as vezes dita pós-moderna, como o melhor dos mundos frente ao passado das lutas comunistas. Isso não quer dizer que as “causas perdidas” que defende estejam abrigadas pelo teto do Fórum Social Mundial: para Zizek, seu lema “Um outro mundo é possível” mostra que seus protagonistas ainda relacionam-se demais com a estrutura já postas pelo Capitalismo. Para fazer seu caminho, ele faz a opção por retornar ao marxismo à sua maneira, o que tem o peculiar efeito de chamar a atenção mundial sobre sua obra: não há dúvida, o que Zizek faz é tornar sedutor o marxismo para as nova gerações. Para isso articula Lacan, Hegel e Marx com cinema, música, cultura popular e a critica dos objetos de consumo. “Em defesa das causas perdidas” entretanto, padece do problema comum aos grandes pensadores contemporâneos: como produzem demais, escrevem demais, torna-se freqüente encontrar traços de obras anteriores nas seguintes. Não há como deixar de ver no capítulo II Lições do passado o eco de suas obras anteriores sobre Robespierre e Mao, ou dos estudos anteriores que fez sobre Estalinismo publicados em espanhol. Há, entretanto, reflexões sobre o pensamento de Heidegger extremamente originais e que não haviam aparecido anteriormente. E é claro, Zizek sempre é um grande contador de causos que sintetizam brilhantemente suas idéias. Em um determinado momento de sua obra, ele cita a ficha de um hotel americano que diz: “Prezado cliente: para garantir que você vai desfrutar sua estadia conosco, este hotel está totalmente liberado do fumo. Qualquer violação deste regulamento resultará numa multa de $ 200”. Assim é o Capitalismo, diz Zizek: estamos condenados a ser castigados se recursarmos a desfruta-lo plenamente. Zizek quer nos mostrar o cinismo do capitalismo contemporâneo em sua caminhada em direção a um capitalismo autoritário, contrário ao direitos humanos, como já anuncia o caso chinês. E o grande perigo é que ele pode estar certo.