“Ele falava: tudo bem, você não precisa querer, vai ser rápido”. Esse é o relato de uma estudante de veterinária da Universidade de São Paulo (USP), que denunciou ter sido estuprada por um universitário intercambista em uma república de Pirassununga (SP). A jovem de 27 anos decidiu se pronunciar e contou sua história em entrevista exclusiva aoG1, depois que casos de supostos abusos envolvendo alunos da universidade se multiplicaram a ponto de a Assembleia Legislativa de São Paulo instalar umaComissão Parlamentar de Inquérito (CPI)para apurar se as instituições de ensino estão sendo omissas ou negligentes com casos de violação de direitos humanos. O episódio com a estudante, que ocorreu em julho de 2013, é investigado por uma sindicância da USP e pela Polícia Civil.
Em seu relato, a jovem, que prefere não ser identificada, dá sua versão do que aconteceu na cidade, onde cursava um semestre do curso, e fala sobre a reação das pessoas e o sentimento de culpa que sofreu. “Não conseguia relaxar e no fundo eu pensava: ‘eu não devia ter feito isso, eu não devia ter feito aquilo’, me deixando levar pelo que costumam dizer desses casos. Mas eu sabia que tinha dito ‘não’ muitas vezes para o agressor e que ele tinha me machucado, e fiquei confusa”.
O episódio levou a Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) a abrir uma sindicância. “Recebemos a denúncia da discente da FMVZ e para apurá-la instalamos uma comissão de sindicância, após a denunciante concordar com a abertura do processo”, disse o diretor da faculdade, Enrico Lippi Ortolani.
Segundo ele, a comissão será constituída por professores da área de direito, medicina e psicologia, que vão ouvir as partes envolvidas e suas testemunhas. “Caso a comissão constate as denúncias, será instalado um processo administrativo, com uma comissão diferente, para sugerir possíveis penalidades internas a serem tomadas pela USP”.
Ortolani afirmou ainda que recebeu a denúncia muito tempo depois do fato, mas que a estudante teria registrado um boletim de ocorrência e informado o então prefeito do campus da USP de Pirassununga, Marcelo Machado De Luca de Oliveira Ribeiro. O G1tentou contato com o docente, mas ele não respondeu o e-mail encaminhado no dia 12 de dezembro e não atendeu os telefonemas feitos desde então.
O suposto estupro também está sendo investigado pela polícia. De acordo com a assessoria de imprensa da SSP, a delegada Tatiane Cristina Parisotto, titular da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Pirassununga, instaurou inquérito policial assim que tomou conhecimento do caso. A vítima realizou exame de corpo de delito e o suspeito foi indiciado. Como o rapaz é estrangeiro, o caso foi encaminhado à Polícia Federal.
“O inquérito foi concluído e relatado à Justiça no dia 7 de novembro. No dia 26 do mesmo mês, retornou à DDM a pedido do Ministério Público com um prazo de 60 dias para que novos depoimentos fossem colhidos”, afirmou a SSP em nota.
G1 – O que aconteceu na noite de 6 de julho de 2013?
Estudante – Na noite de 6 de julho, houve uma festa no campus de Pirassununga. Depois da festa, de madrugada, eu e alguns colegas fomos dormir numa república próxima. O agressor foi dirigindo, eu não o conhecia, tinha visto ele na festa. Quando chegamos lá, eu fui para um dos quartos e o resto do pessoal ficou lá fora, onde tinha uma piscina, e eu fui dormir porque estava cansada e tinha bebido, o que às vezes me dá sono. Eu não fechei a porta porque uma das meninas ia dormir comigo depois, então o agressor entrou e ficou conversando comigo. Eu falei para ele sair, mas ele insistia em ficar. Ele ia se aproximando, sentou na cama, me pegava, e eu dizia não, nem sei quantas vezes, sei que foi um tempão, e eu comecei a me irritar. Ele falava “tudo bem, você não precisa querer, vai ser rápido, olha, eu tenho camisinha, vou mostrar como se faz de onde eu venho” e coisas que não me lembro mais, e isso foi me ofendendo, e eu repetia para ele sair, falei que eu não estava bem. Teve uma hora que eu apaguei e acordei com a dor dele me penetrando por trás, doeu muito, eu me assustei e virei, quando o empurrei ele me segurou com força. Eu levantei o tom de voz e ele também, e me empurrava para cama e subiu em cima de mim. Tocava música alta lá fora. Depois de me debater contra ele, pedindo para ele me soltar, eu menti, falei que ia ceder, mas que precisava ir ao banheiro.
Não achei que ele fosse acreditar, mas acreditou e me deixou ir, dizendo para eu voltar senão ele ia atrás, eu levantei, vesti a calça, saí do quarto, e não me ocorreu de falar com ninguém, porque eu estava muito indignada e assustada e estava todo mundo caindo de bêbado, não ia dar em nada. Eu corri por uns 40 minutos da república até a portaria da USP, que eu não sabia bem onde era, e tive sorte de chegar, lá pelas 4h da manhã. O segurança me atendeu na guarita, e no começo eu não conseguia por em palavras o que aconteceu, fiquei chorando, mas consegui falar, “eu estava numa festa numa república e tentaram me estuprar”, então ele me levou de carona até o meu carro, que estava estacionado dentro do campus. Ele me disse no caminho que podia me levar para fazer o exame de corpo de delito, mas que achava que era um desgaste à toa para mim, porque “quem vai nessas festas esperava o quê?”, que eu precisava aprender a me cuidar e que não ia dar em nada. Na hora eu estava tão abalada e confusa que só no dia seguinte eu percebi que, apesar dele estar certo quanto à nossa Justiça, o que ele falou sugeria que a culpa era minha. Dormi poucas horas no meu carro e pedi para ele vigiar porque achei que o agressor ia vir atrás de mim, não conseguia relaxar e no fundo eu pensava “eu não devia ter feito isso, eu não devia ter feito aquilo”, me deixando levar pelo que costumam dizer desses casos. Mas eu sabia que tinha dito “não” muitas vezes para o agressor e que ele tinha me machucado, e fiquei confusa.
G1 – Você procurou ajuda depois disso? Acionou a segurança do campus, a assistência social, a direção? Quais respostas eles deram à sua denúncia?
Estudante – Procurei. Contei para algumas amigas que tinham ido à festa, quando as encontrei no banheiro do alojamento, no dia seguinte. Percebi que estava sangrando um pouco. Uma delas andou junto comigo o tempo todo porque ele estava no campus, eu o vi no saguão quando a gente ia almoçar e agarrei o braço dela. Eu fiquei acuada o dia inteiro, até voltar para São Paulo com o pessoal que eu tinha levado de carona. Eu mandei um e-mail para a segurança do campus quando cheguei em casa em São Paulo, pedindo para ficarem de olho nele, porque eu tinha medo de que ele fizesse isso com outras meninas, e não pude ficar para dar queixa porque tinha uma viagem marcada para o exterior há muito tempo, o que acabou sendo bom para eu processar melhor o que aconteceu. Assim que voltei começou meu semestre de aulas em Pirassununga. Todo mundo que cursa veterinária faz matérias obrigatórias lá e ficamos alojados até o fim do ano. Nos intervalos das aulas fui passando em alguns lugares com uma cópia do boletim de ocorrência que fiz na primeira semana de aula, no dia 30 de julho.
Fiquei quatro horas esperando para fazer esse boletim numa delegacia vazia. Fui primeiro à assistência social, acompanhada da amiga que foi comigo fazer o boletim. A assistente me disse que já tinha conversado com o agressor, o que eu achei estranho, ela devia ter falado comigo primeiro. Ela disse que ele foi falar com ela acompanhado de um amigo, e que os dois disseram “ela queria, ela bebeu, ela estava dando risada, durante a festa toda ela ficou conversando com todos os meninos, e ela tentou ficar comigo e não conseguiu, ela se comportava como se quisesse transar com qualquer um”. Eu fiquei indignada, o fato de eu ter vontade de ficar com alguém que não o agressor deveria inibi-lo, e não o oposto, e a minha amiga achou bem amador da parte dela sair falando para uma pessoa abalada o que os outros falaram. Eu chorei, tremia de raiva, falei que aquilo tudo era um absurdo, e ela me disse que eu teria que aguentar esse tipo de fala se quisesse ir para frente com isso. Falei que ia aguentar, que ia fazer o boletim de ocorrência, ela e o segurança que nos acompanhava na reunião tentaram me convencer a não fazer, disseram que o agressor poderia me processar por danos morais, que os pais dele iam ter que ficar sabendo, que ia destruir a vida dele.
A minha amiga sugeriu uma sindicância, mas a assistente disse que não ia dar em nada, que esses casos nunca dão em nada. Eu não me lembro de mais detalhes, mas sei que saí de lá chorando de ódio e que a minha amiga teve que me amparar. Durante o semestre inteiro eu fiquei levando cópias para o prefeito do campus, diretor, chefe da segurança, e nunca me chamaram para conversar. Me diziam que “iam aguardar a consultoria do advogado” e que entrariam em contato. No fim do semestre o agressor foi bater na porta do meu quarto no alojamento das meninas, acompanhado de um amigo, às 2h30 da manhã, sendo que ele não conversava com ninguém da nossa turma. Minhas colegas de quarto dormiam com a porta trancada, felizmente, e eu já tinha ido para São Paulo quando isso ocorreu, numa sexta-feira. Uma amiga minha testemunhou essa visita, porque estava estudando no saguão, e me contou na semana seguinte, e outra colega de turma conferiu as gravações das câmeras de segurança.
Fiquei apavorada e fiz um boletim interno, e quando fui pedi-lo para levar para a polícia, alguns dias depois, não conseguiam encontrá-lo. Eu me lembro de ter pedido uma cópia dele para o segurança no momento em que fiz o registro com minha testemunha, mas as impressoras não estavam funcionando e ele disse que não precisava, que era para eu ficar tranquila. Na última das várias vezes em que fui ver se eles tinham encontrado o boletim, um dos seguranças me disse, entre outras coisas, que se eu estivesse na igreja, isso (o estupro) não teria acontecido. Eu me contive e perguntei se as crianças estupradas por bispos também eram culpadas. Ele ficou sem graça, mas insistiu que eu não devia ir a “essas” festas e que, aliás, o melhor hoje em dia era ninguém sair muito de casa. Que uma moça que vai a certos lugares pede para certas coisas acontecerem. Eu desisti de procurar o documento porque precisei voltar para São Paulo. No ano seguinte estava aliviada por não precisar morar mais lá, mas ao longo da graduação ainda temos aulas em Pirassununga, ficando hospedados no campus, e foi numa dessas idas neste fim de ano que eu vi o agressor no alojamento, tive uma crise nervosa e fui embora antes da hora.
G1 – Soubemos que você procurou a polícia para denunciar o crime, mas não nos dias seguintes ao fato. Por que preferiu esperar?
Estudante – Eu tinha uma viagem marcada fazia tempo, e a minha vontade era mesmo de sumir por uns tempos. Mas acho que o motivo mais forte foi o que todo mundo sabe: sempre que acontece isso as pessoas dizem que a culpa é sua, que não vai dar em nada de qualquer jeito, e que é melhor deixar para lá, que na verdade não foi nada demais, e isso faz você se sentir ainda pior e duvidar de si mesma. Você fica chocada por como uma violência que a abalou tanto não significa nada para a sociedade, para as pessoas com as quais você convive, de que você gosta. Eu demorei para contar para os meus pais porque, se eu ouvisse deles o que ouvi de muita gente, eu achava que iria desmoronar, que não iria aguentar. Não é raro também a ameaçarem, ouvi de várias pessoas que ele poderia se vingar, que não valia a pena me arriscar “só por isso”. E tem a óbvia impunidade brasileira com tudo, e mais ainda com esse tipo de caso. Se não prendem o cara que esfaqueou a avó ou estuprou, sei lá, 50 mulheres sei lá onde, vão fazer o que com o meu caso? O máximo que eu fiz foi dar uma entrevista anônima ao Jornal do Campus em abril deste ano, porque uma menina que escreve para o jornal faz parte do coletivo feminista de uma rede social para o qual eu entrei depois do que aconteceu. Só ali eu pude desabafar sem julgamentos. Achei que falando para um jornal local eu poderia inspirar outras alunas a pelo menos refletir sobre isso, ou tomar coragem para falar de seus casos, porque a gente sabe que há um monte, que o que chega a ser denunciado é a ponta do iceberg.
Eu só voltei a falar disso quase um ano depois, quando foram surgindo novas denúncias na mídia e eu percebi que a mentalidade das pessoas em relação a isso está mudando. O que costumam me perguntar não é “por que você esperou?”, mas sim “como você conseguiu levar adiante? Como você aguenta? Por que não desistiu? Você é muito forte”. Conforme o pessoal da faculdade ficou sabendo, foi espalhando e outras vítimas vieram falar comigo. Percebi que eu podia ajudar outras meninas, que o meu exemplo podia inibir essas atitudes e mudar um pouco essa cultura antiquada. No fim, o que me fez continuar foi a certeza de que o que aconteceu comigo e acontece com tantas mulheres não é justo e ponto final, e foram também as histórias que eu ouvi sobre o agressor durante aquele semestre, de que ele sugeria aos meninos embebedar as meninas e levá-las ao centro acadêmico para abusar delas, que ninguém ia perceber… Se eu desistisse de denunciar e algo acontecesse com elas, eu me sentiria culpada para sempre.
G1 – Como você recebeu a notícia de que a universidade abriria uma sindicância para apurar seu caso? Você acha que essa apuração demorou para ser anunciada? Na sua opinião, quais serão os resultados dessa sindicância?
Estudante – Perdi muitas aulas e tive que conversar com uma professora, que me chamou à sala dela devido ao excesso de faltas, no final deste ano letivo. Eu contei tudo para ela, ela ficou chocada e marcou uma reunião comigo e com o diretor. Foi aí que me sugeriram abrir uma sindicância pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ), de São Paulo, e não pela Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA), de Pirassununga. Eu aceitei. Mas a mentalidade de todos sobre isso ainda é muito arcaica.
Naquela altura do campeonato eu tive de ouvir coisas do tipo “mas era óbvio que você deveria ter procurado a gente”, e “por que você não falou antes?”, como se o Brasil fosse algum modelo mundial em punição de violência contra a mulher e igualdade de gêneros. Como se a vítima não ficasse abalada e não fosse humilhada e até coagida a não contar para ninguém o que aconteceu. Como se a responsabilidade fosse minha de adivinhar como os processos administrativos funcionam, e não de quem eu procurei em me orientar sobre o que fazer. O meu caso foi julgado por leigos antes mesmo de ser reportado oficialmente, e a culpa é minha por não ter insistido em receber as chicotadas em vão. Como vou saber que só vão abrir essa sindicância agora porque estão com medo da mídia em cima? Eu não tenho a menor idéia do que vai dar. Dizem que sindicância e nada é a mesma coisa, mas talvez aconteça algo pelo assunto estar na mídia.
G1 – Você está decepcionada com a universidade? Continua frequentando as aulas?
Estudante – Eu tive uma fase de animação, digamos, pós-Pirassununga, no começo deste ano, mas no segundo semestre eu tive uma recaída, então faltei bastante. Eu estou decepcionada com a universidade, sim, mas acho que o machismo ainda é algo forte demais para qualquer instituição ser imune a ele. Não é que a USP seja machista e injusta, a USP está num país machista e injusto. Talvez fora dela eu tivesse até sido tratada de forma pior.
G1 – O que a USP precisa fazer para inibir casos como o seu?
Estudante – Bom, primeiro admitir que proibir festas é uma medida antiquada que não resolve nada e joga a culpa no lugar errado. A universidade precisa ter assistentes sociais que passem por algum processo seletivo, que tenham experiência, que no mínimo acolham as vítimas e as orientem sobre o que fazer, e não que estejam ali apenas ocupando um cargo. Precisamos de mais seguranças do sexo feminino, mas não basta elas serem mulheres, muitas mulheres são machistas, eu senti isso na pele. E é preciso haver punição, nem que seja apenas acadêmica. É natural que os meninos continuem abusando se, além de nada acontecer, a vítima ainda for culpada e ameaçada. Essa postura garante que o consentimento feminino não seja relevante e que sexo e estupro sejam vistos como sinônimos.
G1 – O que você espera que a polícia faça?
Estudante – Nada. Eles foram muito gentis comigo ao me acompanharem até o Instituto Médico Legal (IML), e o investigador que me ligou um dia em Pirassununga parecia bem determinado a levar o caso adiante. Mas de repente eu nunca mais ouvi falar deles, e sei que a maioria dos casos de estupro no Brasil é ignorada, bem como a maioria dos casos de justiça. E o engraçado é que ainda assim as pessoas ficavam impressionadas e assustadas porque eu ia fazer o boletim de ocorrência de qualquer jeito. Como se aqui fosse a Suécia e uma punição severa demais fosse cair do céu a qualquer momento na cabeça dele.
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