Pesquisadores apontam que volume de temas raciais dentro da academia aumentou. Apesar de não poderem quantificar, muitos fazem relação com a maior presença do estudante negro na universidade.
A Presença do negro no ensino superior brasileiro está aumentando nos últimos anos. Entre as razões, estão políticas públicas como o sistema de cotas sociais na instituições federais e ações como o Programa Universidade Para Todos (ProUni) e o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), além de questões econômicas, como a ascensão de classes sociais mais baixas no País.
O número de brancos matriculados em graduação presencial e a distância é 11,8 vezes maior do que de negros, segundo dados do Censo 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia (IBGE). São mais de 3,9 milhões de estudantes brancos contra 330,1 mil. Se somarmos os estudantes pardos, 1,8 milhões, a diferença cai bastante, mas ainda é grande para um país em que praticamente metade da população é negra: totalizam 2,1 milhões de negros (pretos e pardos, segundo classificação do IBGE), pouco mais de metade dos brancos no ensino superior.
Pesquisadores têm notado que o volume de temas raciais estudadas dentro da academia também aumentou. Apesar de não poderem quantificar, muitos fazem relação com a maior presença do estudante negro na universidade, além de questões como fomento de pesquisas na temática racial por parte do governo e a maior visibilidade do tema na mídia.
O professor e membro do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade de Brasília (UNB), Nelson Inocencio, que está engajado nas causas raciais desde 1978 e estuda o tema desde os anos 1980, conta que os estudos sobre relações raciais já existem na academia desde os anos 1950. “Temos registros de pesquisas acadêmicas focadas nas relações entre negros e brancos, ou sobre a história da população negra, de 60 anos atrás. A pesquisa sobre o assunto não é inédita, mas no passado não era um dos assuntos prioritários. No Brasil, sempre houve uma tendência a menosprezar o racismo e tratá-lo como tema secundário”, afirma. Segundo o professor, levou muito tempo para a sociedade brasileira entender que esse debate não poderia ser adiado.
“A diferença entre pesquisas do anos 60 e as realizadas hoje é o fato do tema racial passar a ser pautado no debate nacional, pela mídia, quando inclui recortes raciais em dados que apresenta e até por presidentes da República, como Fernando Henrique Cardoso, o primeiro a reconhecer o racismo como fenômeno no Brasil. Além disso, as políticas públicas de ações afirmativas (como as cotas) causam grande impacto na pesquisa acadêmica. Nunca se viu tantos artigos sobre o tema”, diz Inocencio.
Como consequência, pesquisas acadêmicas voltadas ao campo racial passaram a receber um incentivo maior do governo, servindo também de estímulo para que pesquisadores se interessassem no tema. Inocencio acredita que as pesquisas nos temas raciais continuarão crescendo também nos trabalhos de conclusão de mestrado e doutorado. “No passado, quem pesquisava o assunto tinha perfil de ativista. Hoje, não necessariamente é assim. É importante que brancos também leiam e participem da discussão, porque o racismo não é um problema do negro, mas da sociedade brasileira”. O professor destaca ser legítimo que o negro se organize também, mas observa que o interesse do estudante depende muito mais do seu nível de compreensão da causa e politização do que da raça a que pertence.
“Não se pode exigir que estudantes negros sejam militantes”
A assistente social e doutoranda em educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Luciane Bello percebe um aumento no interesse por temas raciais independentemente da raça do pesquisador. Branca, ela estudou o tema em sua dissertação de mestrado em 2011, também pela UFRGS, quando entrevistou 10 estudantes negros e cotistas de diversas áreas do conhecimento, como geografia, engenharia civil, letras, biologia marinha, entre outras, tentando identificar que dificuldades eles encontravam na universidade. “Decidi por esse tema porque queria colaborar com a causa positivamente. Naquela época, as pessoas não acreditavam que as cotas poderiam ajudar, mas sim, piorar a situação de racismo (a UFRGS aprovou a políticas de cotas em 2007 e a colocou em prática no ano seguinte). Essa ideia não se confirmou. Eu queria estudar o outro lado, a capacidade que esses alunos tinham de lidar com os problemas enfrentados na universidade”, explica.
A pesquisadora vê que, em alguns casos, o próprio negro tem dificuldades para se ver como negro. “Percebo que é preciso um pertencimento com a causa por parte dos alunos negros que queiram pesquisar o tema. Já escutei alunos dizendo que se descobriram negros em algum momento. Quando se aumenta a discussão do tema na academia, tanto o negro quanto as outras raças passam a ver a questão de outra forma. Tanto que no Censo do IBGE a população que se autodeclara negra já ultrapassou a branca. Um dos fatores pode ser que o povo negro está se aceitando mais”, opina.
Luciane acredita que a troca de experiências entre alunos de raças diferentes é muito rica para pesquisas de temas raciais, mas que a questão deve ser debatida na sociedade como um todo. “Em sala de aula, o estudante negro compartilha as situações por que passa e tem muito a acrescentar. Mas acredito que essa é uma questão de todos. Não se pode exigir que esses estudantes negros sejam militantes e que a vida deles gire em torno das questões raciais, como se só eles pudessem lidar com isso. Independentemente de cor, é preciso conhecer nossa história.”
Recursos para pesquisas no tema
O coordenador do Grupo de Pesquisa de Trabalho, Educação e Relações Étnico-Raciais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), Erisvaldo Pereira dos Santos, afirma que o maior número de pesquisas científicas de tema racial não está vinculado diretamente com a entrada dos negros na universidade em um primeiro momento, mas sim com a ação do Estado e agências de fomento, que oferecem condições para que pesquisas nesse campo cresçam. “Não há como pesquisar sem recursos de laboratórios, instrumentos ou material de coleta. O Estado brasileiro, ao pautar o tema racial por uma série de legislações, se vê na obrigação de oferecer linhas de pesquisa que discutam essas temáticas e, a partir disso, que diferente sujeitos e áreas pesquisem os temas”, diz.
Ao mesmo tempo, Santos também acredita que a inserção de alunos negros no ensino superior significa uma mudança de mentalidade da sociedade brasileira, que tornar invisível ou se nega a discutir questões raciais. “As pessoas querem diminuir a complexidade das questões étnico-raciais no Brasil, mas não basta dizer que a nossa sociedade é composta de brancos, negros e índios. É preciso problematizar o que significa a presença de cada uma dessas raças na sociedade, em termos de participação nos benefícios econômicos”.
Por causa do debate presente em instituições de ensino e entidades comprometidas com a universalização do ensino, existe uma pressão para que as pesquisas na área sejam fomentadas. Santos cita como exemplo de resultado desse movimento um incentivo dado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para pesquisas em países africanos de língua portuguesa. “Isso acarreta em um deslocamento de olhar. Estamos caminhando na direção da real valorização das heranças africanas do passado e presente brasileiro”, conclui.
Uma nova geração de pesquisadores
Apesar do debate de relações raciais sempre ter estado presente nas universidades brasileiras, a presença do negro conseguiu mudar a abordagem, porque são pessoas que falam de outro lugar e que têm outras experiências também válidas para a academia. É o que acredita a antropóloga e consultora da Unidade de Diversidade, Raça e Participação da Ação Educativa, Pequisa, Assessoria e Informação, Jaqueline Lima, que iniciou a militância no Movimento Hip Hop, que sempre teve discussões fortes sobre relações raciais.
A entidade Ação Educativa é responsável por ações como o concurso Negro e Educação, que teve quatro edições e seus objetivos eram incentivar a produção de conhecimento em educação voltada para a temática de relações raciais. “Com a população negra começando a ocupar um novo espaço (a universidade), surgem novas questões. Antes a problemática era que o negro não estava no ensino superior. Quando ele entra na faculdade, as questões se transformam em como garantir a permanência desse estudante, os conflitos sociais e até o currículo de cursos”, conta.
O presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), Paulino de Jesus Francisco Cardoso, atribui o aumento do tema racial entre as pesquisas acadêmicas a uma geração de pesquisadores, como a professora Petronilha Gonçalves e Silva, que se formaram no movimento negro dos anos 1970 e 1980 e começaram a ocupar cargos docentes nos anos 1990, organizando espaço no interior das instituições para o enfrentamento do racismo, com a criação de núcleos de estudos afro-brasileiros. Segundo a ABPN, os núcleos somam 96 em todo o Brasil, do setores privado, público e comunitário. “Uma coisa puxa a outra. A entrada do negro na universidade vai abrindo campos de estudo e, a partir de 2003, houve um aumento exponencial do interesse maior de estudantes, independentemente de raça, nas temáticas de desigualdade raciais”, informa.
Cardoso defende que, além das cotas, programas como Prouni têm um papel importante nesse incentivo acadêmico. “Mais da metade dos estudantes que concorrem ao programa se autodeclaram negros. A flexibilização do Fies também permitiu que a presença negra nas universidades fosse para diversas áreas como medicina e engenharia. Por isso, a tendência é que, se antes as pesquisas do tema envolviam a área de humanas, agora veremos uma ampliação para outros campos”.
A ABPN é composta por cerca de 1.200 sócios, entre pesquisadores vinculados a temáticas raciais. Pouco mais de 20% deles não são negros. A associação organiza anualmente o Congresso Nacional de Pesquisadores Negros (COPENE), que terá sua oitava edição realizada em Belém, no Pará, do dia 29 de julho a 2 de agosto, onde serão discutidos temas raciais e que dizem respeito a populações afrodescendentes. Segundo Cardoso, há uma escassez de dados sobre temas pesquisados por negros porque apenas no ano passado o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) incluiu o quesito corraça na plataforma lattes. “Ainda é cedo, mas logo teremos um perfil melhor dos pesquisadores negros e da temática racial nas pesquisas acadêmicas”.
Números: mais negros nas universidades
A presença do negro (pretos e pardos) nas universidade brasileiras aumentou nos últimos anos. Em 2000, segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), eram 2,2 milhões de brancos no ensino superior contra 491,6 mil pardos e 68,2 mil pretos. Em 2010, o número de pretos na graduação subiu 4,8 vezes, somando 330,1 mil estudantes. A diferença entre o número de brancos e pretos era de 32,9 vezes em 2000 e, 10 anos depois, caiu para 11,8 vezes, mas ainda existe.
Nas titulações de mestrado e doutorado, em 2000, eram 137 mil brancos, contrastando com 3,7 mil pretos. Dez anos depois, o número de pretos subiu 2,9 vezes e foi para 11 mil estudantes. Entre os brancos, o aumento foi menor: 1,3 vezes, subindo para 186,9 mil alunos. Contudo, a diferença entre o número de mestres e doutores brancos e o de pretos ainda existe: são 16,8 vezes mais brancos com essas titulações.
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