Alunos que cursaram todo o ensino médio em escola pública, sem distinção de raça e renda, e passaram no Sistema de Seleção Unificada (Sisu) no início do ano por meio das cotas conseguiram fazer a nota de corte ultrapassar a dos não cotistas em 11% dos cursos na primeira chamada. Isso significa que, nesses cursos, todos os cotistas passariam na primeira convocação mesmo se não contassem com a reserva de vagas.
O G1 obteve com exclusividade os dados do Ministério da Educação via Lei de Acesso à Informação e publica outras reportagens sobre o desempenho de cotistas no Sisu 2014 nesta quinta (20) e na sexta (21). Entre elas, a série aborda as maiores diferenças entre notas de corte e os cursos mais disputados do país.
Segundo o Sisu, a nota de corte é calculada para cada curso “com base no número de vagas disponíveis e no total dos candidatos inscritos naquele curso, por modalidade de concorrência”. Ou seja, um mesmo curso terá nota de corte diferente para candidatos segundo a ampla concorrência (onde não há reserva de vagas) e segundo as diferentes cotas.
Na última edição do sistema, em 89% dos cursos a política de cotas permitiu a aprovação de estudantes de escola pública sem distinção de raça e renda que concorreram a vagas reservadas e tiveram uma nota de corte menor que a geral. A lei federal prevê quatro tipos de cotas: 1) para alunos de escola pública; 2) para alunos de escola pública que tenham renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo; 3) para alunos de escola pública que se declarem negros, pardos ou indígenas; e 4) para alunos de escola pública que tenham renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo e também se declarem negros, pardos ou índios (Veja como funciona o sistema de cotas).
O Sisu foi realizado em janeiro e selecionou candidatos que fizeram o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para 171 mil vagas em instituições públicas de ensino superior.
No caso dos alunos que cursaram o ensino médio integralmente em escola pública, sem distinção de raça ou renda, a nota de corte obtida foi maior que a da seleção geral em 372 dos 3.384 cursos nestas condições (segundo o MEC, há cursos que, por conta do baixo número de vagas oferecidas pelo Sisu, não contemplam todas as categorias de cotas).
Quando os cotistas são negros, pardos e índios com renda até 1,5 salário mínimo, a cota tem um peso ainda maior. Em apenas 11 dos 3.966 cursos onde foi oferecido esse tipo de reserva a nota de corte dos cotistas foi maior que a dos estudantes não cotistas (o que representa 0,3% do total).
Notas de corte semelhantes
Para especialistas em políticas de ação afirmativa e democratização do ensino, os números não surpreendem e refletem a situação atual do sistema educacional brasileiro. Segundo o professor Romualdo Luiz Portela de Oliveira, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), esse resultado deve se repetir, em maior ou menor intensidade, enquanto houver desigualdades sociais que afetem o desempenho escolar dos jovens. “A cota cumpre um papel de compensação de desigualdades sociais importante. Enquanto for necessário ter cota, isso deve acontecer. Isso só deixaria de acontecer quando o desempenho dos cotistas fosse equivalente à população em geral, quando as discriminações sociais deixassem de se refletir na escola.”
“A política é exatamente por isso, seria estranho se os resultados fossem diferentes”, afirma o professor João Feres Júnior, do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Segundo ele, os dados mostram que as cotas estão cumprindo o propósito de incluir no ensino superior pessoas que, de outra forma, ficariam de fora. “O mais interessante a se notar nos dados é a diferença pequena nas notas de corte [entre não cotistas e alunos da rede pública]”, destaca Feres, que fez uma análise dos dados compilados pelo MEC.
Para comparar o desempenho de modalidades de cotas, o G1 adotou uma diferença de 40 pontos (considerada “pequena” por especialistas) entre a nota de corte de não cotistas (os da ampla concorrência) e a dos quatro tipos de cotistas. Em 82% dos cursos, houve uma diferença de menos de 40 pontos entre a nota de corte da ampla concorrência e a da cota para alunos de escola pública (sem distinção de renda e raça).
Entre a ampla concorrência e a cota de alunos de escolas públicas com renda de até 1,5 salário mínimo, a diferença foi menor que 40 pontos em 67% dos cursos. A mesma diferença menor também foi registrada em 60% dos casos dos estudantes de escola pública que se declararam negros, pardos ou indígenas. No caso dos cotistas negros, pardos e índios com renda baixa, a diferença entre as notas mínimas para aprovação é um pouco maior: só em 43% dos cursos a diferença é menor que 40 pontos.
As notas de corte no Sisu variaram de 500,25 a 871,31 pontos na primeira chamada, segundo os dados do Ministério da Educação.
Segundo o professor da Uerj, a margem pequena entre as notas de corte dos aprovados pela seleção geral e a dos alunos cotistas das escolas públicas se explica pelo fato de os últimos já serem uma exceção. “A pessoa que consegue terminar o ensino médio já é uma pessoa que normalmente está capacitada para concorrer normalmente. Muita gente foi ficando para trás; na escola pública, então, muito mais.”
A professora Angela Randolpho Paiva, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), diz que os números reforçam a ideia de que os cotistas negros, pardos e índios com renda familiar per capita até 1,5 salário mínimo são os que mais precisam de políticas de ação afirmativa. “Se você pega o primeiro resultado, só de alunos da escola pública, e coloca o componente da renda baixa, já cai expressivamente [a porcentagem de cursos com pequena diferença entre cotistas e ampla concorrência], de 82% pra 67%. E se agrega isso à questão da cor, da declaração racial, com a renda, você só tem aqueles alunos heroicos, que chegaram lá contra toda a adversidade do sistema escolar”, diz.
Cursos concorridos
O fato de a maioria das notas de corte entre cotistas e não cotistas de escola pública sem renda baixa terem diferença pequena deve ser visto com cautela, segundo os três especialistas. O mesmo vale para as outras modalidades. Eles alertam para a necessidade de desagregar os dados para olhar cursos com características diferentes. “Você pode achar que a diferença entre a nota de cota é resquicial, quase zero, e mesmo assim ter grande desigualdade quando desagrega por curso. Os cotistas vão se concentrar em cursos de menor prestígio e lucratividade”, explica João Feres Júnior, da Uerj.
No caso de medicina, por exemplo, não há casos em que a nota de corte de uma das quatro faixas de cota tenha sido maior que a geral. Quando a comparação é feita com alunos negros, pardos e índios com até 1,5 salário mínimo, apenas em dois de 44 cursos a diferença é menor que 40 pontos entre as notas mínimas para aprovação na primeira chamada.
O mesmo acontece para o curso de direito. Em apenas três dos 66 cursos oferecidos a diferença entre a nota de corte da ampla concorrência e a dos cotistas raciais com renda baixa é inferior a 40 pontos.
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