Primeira universidade do estado e uma das pioneiras no país a instituir um sistema de cotas — no vestibular de 2003 —, a Uerj vê os desdobramentos de suspeitas de fraudes na concessão do benefício extrapolarem os muros da instituição. O capítulo mais recente está no Tribunal de Justiça do Rio: após ser expulso no ano passado, acusado de burlar a reserva de vagas no vestibular de 2009, Bruno de Barros Marques, de 29 anos, conseguiu em fevereiro um mandado de segurança determinando que a Uerj entregue toda a documentação relativa aos créditos já feitos. Quando foi expulso o ex-aluno se preparava para iniciar o 10º período de Medicina. Com a decisão, Bruno poderá cursar só os três períodos restantes em outra faculdade e exercer a profissão.
Além disso, o Ministério Público (MP) estadual investiga mais de 60 denúncias sobre o tema desde 2007, concentradas em um inquérito civil. Só no ano passado, o órgão pediu informações sobre 41 aprovados no concurso de 2013, para apurar eventual falsidade em autodeclarações, como de negros ou indígenas.
No texto da decisão que beneficia Bruno, publicada em 27 de fevereiro, o relator, desembargador Pedro Saraiva de Andrade Lemos, da 10ª Câmara Cível do TJ, negou o pedido da defesa do aluno para que a universidade anulasse o processo administrativo que culminou com o seu jubilamento, mas considerou válida a apelação para que ele tenha direito aos créditos de todas as matérias já cursadas. A advogada do estudante Géssica Mendes Mendonça ainda tenta um novo recurso ao colegiado para que seu cliente possa voltar às salas de aula da Uerj. Géssica informou que nem ela nem Bruno dariam entrevista por enquanto, mas encaminhou os documentos da defesa que têm como base a lentidão da instituição em punir o rapaz: “Ora, se houve falha no procedimento de cotas isso deveria ter sido apurado tão logo o aluno tivesse ingressado na faculdade, não fazendo qualquer sentido, depois de quatro anos e meio de ensino, simplesmente jogar no lixo todo o esforço dispendido” (sic).
Mas a polêmica em torno do caso de Bruno começou em agosto de 2009, com o envio à reitoria da Uerj de um e-mail de um ex-colega do rapaz, que cursara Veterinária com ele em 2006 na Universidade Federal Rural do Rio (UFRRJ): “Queria entender como o candidato marca ser negro na inscrição se só em olhar para ele já se constata que isso não é verdade. Sem falar que uma investigação a fundo pode revelar outras coisas, como residência e renda mensal. Se o Brasil fosse um país sério, casos assim no mínimo teriam suas inscrições anuladas”.
A partir daí, uma comissão de sindicância começou a analisar o caso. O principal problema detectado foi o fato de Bruno ter declarado uma renda mensal de R$ 450, desprezando, por exemplo, os ganhos do pai, funcionário aposentado da Petrobras, dono de uma loja de material hidráulico e elétrico na Tijuca. O limite à época para estar apto a cotas era de R$ 960 per capita. Curiosamente, os R$ 450 declarados eram do salário que o estudante informou receber como funcionário do estabelecimento do pai, onde dizia trabalhar nos fins de semana. Ao se inscrever no vestibular, o rapaz declarou morar numa república em Seropédica, pagando aluguel de R$ 120 mensais. Mas, já cursando Medicina, ao preencher o formulário da bolsa de apoio a alunos carentes, ele forneceu um endereço na Tijuca.
Após visita à loja dos pais e depoimentos do próprio Bruno e do ex-colega que denunciou o caso, a comissão concluiu que o estudante teria praticado a fraude da carência econômica fundamentalmente por não declarar a renda de seus genitores. Outro ponto levantado foi sua autodeclaração como negro, sem aparentar a raça. Segundo relatório feito pela equipe da Uerj que analisou o caso, ele alegou que “a avó paterna era morena escura ou negra clara”. Então, desde o fim de 2010, o estudante vem lutando na Justiça contra a Uerj, alegando não ter tido direito à ampla defesa na investigação interna. Num primeiro processo, perdeu em diversas instâncias. Mas em outro, conseguiu o mandado de segurança que, ao menos até agora, dá a ele o direito dos créditos já cursados.
“Dizer a um paciente que um médico não poderá atendê-lo porque, apesar de ter sido aceito no vestibular e ter cursado a faculdade com notas altas, foi constatado que o mesmo não era tão pobre quanto supostamente alegou parece uma situação dotada de irrazoabilidade”, disse a defesa de Bruno à Justiça.
Enquanto a Uerj ainda decidia pela exclusão do estudante, recebeu por e-mail uma nova denúncia, no início de 2011: “É um absurdo ele ter tirado a vaga de uma pessoa que realmente precisa. E o pior é ter que ouvir que utiliza a bolsa para botar gasolina no carro. Foi da minha turma no Curso pH e de carente não tem nada”. Na sindicância, Bruno relatou ter se formado no ensino médio no Colégio Palas, na Tijuca, em 2002, e afirmou ter usado apostilas do pH para se preparar para os vestibulares. Também negou ter automóvel próprio.
A decisão que determina a concessão dos créditos ao aluno excluído divide opiniões. Para a presidente da Comissão de Ensino Jurídico da OAB-RJ, Ana Luísa Palmisciano, punir o estudante com a perda do que já cursou seria aplicar uma dupla penalidade:
— Na doutrina e na jurisprudência, a teoria do fato consumado é aceita. E acho que o argumento vem sendo aceito porque seria um desperdício com a sociedade. E poderia violar o princípio da razoabilidade, que deve ser seguido pela administração pública. Não vejo como apagar o que já existiu.
Educafro critica decisão
Já o diretor-presidente da ONG Educafro, frei David dos Santos, que luta pela inclusão de afrodescendentes, considera absurda a decisão da Justiça:
— Quer dizer que se a pessoa rouba nove de 12 sacos de feijão, ela pode levar os nove para casa e fica tudo certo? Se preciso, vamos entrar com uma representação contra o desembargador que deu essa decisão.
As suspeitas de fraudes na Uerj foram noticiadas com exclusividade pelo GLOBO em janeiro. À época, o reitor Ricardo Vieiralves afirmou que havia um caso de expulsão: o de um jovem da Zona Sul, aluno do primeiro ano de Medicina, que teria usado a renda da doméstica para se enquadrar no critério de carência econômica. Depois disso, Vieiralves foi insistentemente procurado, mas não falou mais sobre o assunto, deixando em dúvida se, além do caso de Bruno, há outra expulsão, já que as características são completamente diferentes.
Apesar do grande volume de denúncias que vem chegando ao MP, constam nos autos do inquérito que concentra os casos que a Uerj instaurou apenas sete sindicâncias para investigar 16 alunos ou candidatos, todos de Medicina. Dessas, somente duas não foram arquivadas. Além da de Bruno, há outro processo, da filha de um delegado da Polícia Civil. Este inquérito corre em segredo de Justiça.
Ainda segundo o inquérito do MP, uma das linhas de investigação é verificar se houve eventual ato de improbidade de servidores públicos que integram os setores de recepção e avaliação de documentos e de apuração de fraudes. O MP recebeu relatório das atividades desenvolvidas pela Comissão de Análise Socioeconômica da Uerj, ali constando, por exemplo, “o pífio número de 17 visitas domiciliares ao longo dos anos de 2010 e 2011”.
Reserva é de 45% das vagas
A lei mais recente em vigor a respeito de cotas na Uerj, de 2008, estabelece três tipos de reserva na universidade: 20% para os estudantes negros e indígenas; 20% para os oriundos da rede pública de ensino; e 5% para pessoas com deficiência e para filhos de policiais civis, militares, bombeiros militares e de inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão do serviço. Em todos os casos o estudante precisa provar carência econômica: atualmente, renda mensal per capita de até R$ 1.017.
Há duas comissões no vestibular da Uerj responsáveis pela análise dos candidatos aptos: a de Análise Socioeconômica e a de Análise de Opção de Cotas. A primeira, por exemplo, é composta por três pessoas, mas na época de vestibular são contratadas 28 assistentes sociais para análise dos documentos, segundo depoimentos que constam no MP. Para a comprovação de carência, é preciso encaminhar documentos como cópia do Imposto de Renda e de comprovantes de residência. Alunos de escola pública precisam encaminhar os documentos do colégio. Para quem quer se declarar indígena ou negro, basta preencher e assinar uma autodeclaração atestando ciência das punições previstas em Código Penal caso haja falsidade.
Caso as comissões indefiram o pedido, cabe recurso ao Departamento de Seleção Acadêmica (Dsea). Em 2010 e 2011, por exemplo, relatórios do Dsea apontaram 9.724 indeferimentos de cotas depois de análise das documentações (4.414 em 2010 e 5.310 em 2011). Após os recursos apresentados por candidatos neste biênio, o número caiu para 9.211 (4.066 em 2010 e 5.145 em 2011).
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