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O Brasil pode atingir um nível de equidade entre negros e brancos no ensino superior em pouco mais de uma década, se o ritmo de aumento na inclusão racial visto nos últimos anos não for freado ou revertido pela crise econômica que afeta o país desde 2014.
É o que indica um cálculo feito pelos economistas do Insper Sergio Firpo, Michael França e Alysson Portella. Os pesquisadores criaram o Ifer (Índice Folha de Equilíbrio Racial), cuja metodologia foi desenvolvida por eles a partir de um trabalho preevio do qual participou o economista Lucas Rodrigues, da USP.
O indicador aponta o quão distantes as 27 unidades da federação e as cinco regiões brasileiras estão de um quadro em que os pretos e pardos tenham acesso às mesmas oportunidades que os brancos.
Em educação, um dos três componentes do índice lançado pela Folha neste mês (os demais são renda e saúde), o parâmetro dessa conta é a proporção de negros de 30 anos ou mais com nível superior completo.
Esse componente foi o principal responsável pela melhoria do Ifer de forma agregada na maior parte do país.
Embora o ensino superior brasileiro ainda seja marcado por múltiplas desigualdades, inclusive raciais, a proporção de negros de 30 anos ou mais com diploma universitário se aproximou de sua representação populacional em 23 das 27 unidades da federação entre 2014 e 2019.
As exceções foram Ceará, Alagoas, Piauí e Sergipe, afetados, provavelmente, pela crise econômica que atingiu com mais força os estados do Nordeste.
Embora as políticas do governo cearense para a educação básica sejam tidas como modelo, elas ainda são recentes para ter impacto significativo na população com 30 anos ou mais. Foi em 2008, por exemplo, que o estado passou a condicionar o volume de repasses do ICMS aos resultados das escolas.
Dois dos estados mais próximos do equilíbrio educacional no Ifer —Rondônia e Amapá— e dois com as piores marcas nesse componente —Alagoas e Amazonas— também estão em polos opostos no ranking de renda. Não é à toa.
As condições financeiras são importantes tanto para o estudante pagar a mensalidade de uma universidade privada como para ele poder se manter em uma pública e trabalhar menos.
O crescimento econômico que o Brasil registrou nos anos anteriores à recessão que eclodiu em 2014 pode, portanto, ser parte da explicação para o avanço na inclusão racial no ensino superior registrado na série histórica do Ifer.
O indicador pode variar entre -1 a 1. Quanto menor, mais desequilibrado em favor dos brancos e quanto maior, em favor dos negros. O patamar entre -0,2 e 0,2 indica equilíbrio, sendo zero o ideal.
O cálculo de Firpo, França e Portella sugere que o componente educacional do Ifer deve atingir o patamar de equilíbrio (-0,2) em 12 anos, e total equidade (zero) em 27 anos, se a velocidade de progresso no componente educacional for mantida —algo que, dado o quadro econômico atual do país, pode encontrar obstáculos.
A projeção dos pesquisadores mostra, no entanto, significativas diferenças regionais. No Centro-Oeste, o equilíbrio relativo pode ser atingido em 5 anos e a equidade completa, em 18. No Nordeste, esses prazos são, respectivamente, de 21 e 44 anos.
Além da expansão econômica entre meados dos anos 2000 e o início da década passada, outros fatores contribuíram para a queda da desigualdade no ensino superior.
Em trabalho acadêmico, Adriano Senkevics, doutorando na USP, elencou quatro deles: melhora na taxa de conclusão do ensino médio, expansão de vagas em universidades, ações afirmativas e mudanças na autodeclaração dos estudantes, advinda de uma maior valorização da negritude.
As ações afirmativas são aplicadas no ProUni e nas instituições públicas, com as cotas. Elas têm impacto importante, porém limitado devido às características do ensino superior brasileiro.
O ProUni, que troca bolsas por isenção fiscal em instituições privadas, bancou 6,6% das matrículas de nível superior no país em 2019. Parte dessas vagas é reservada a pretos, pardos e indígenas, na proporção da presença desses grupos no estado do curso pleiteado.
No caso das instituições de ensino superior públicas, que detêm 24,2% das matrículas, a reserva de vagas varia de acordo com a dependência administrativa.
Para as federais, a Lei de Cotas, de 2012, estabelece que será destinado a pretos, pardos e indígenas (PPI) o número de vagas correspondente à participação desses grupos na UF, calculada sobre metade das vagas reservadas a egressos de escola pública. Um dispositivo dessa legislação prevê que ela seja revista em 2022.
Estudo da economista Ursula Mello, pesquisadora do Institute for Economic Analysis, de Barcelona, mostra que, de 2012 a 2015, a porcentagem de estudantes PPI de escolas públicas nas universidades federais aumentou de 29% para 36%.
Usando um modelo estatístico que isola outros fatores, ela chegou à conclusão de que 57% desse aumento se devem à Lei de Cotas.
A pesquisadora também constatou que as cotas com o critério racial são praticamente duas vezes mais efetivas para aumentar as matrículas de estudantes PPI de escola pública, quando comparadas às cotas sem essa regra.
A Lei de Cotas se aplica somente às universidades federais, mas uma série de instituições estaduais adotaram sistemas parecidos de reserva de vagas antes mesmo de 2012.
Uma das que o fez mais tardiamente foi a USP (Universidade de São Paulo), que neste ano alcançou, pela primeira vez, a marca de mais de metade dos ingressantes oriundos de escola pública, com 27,4% de PPI.
Moradora de Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo, Bruna Jesus Santos, 17, quer cursar direito ou alguma graduação de ciências humanas, mas ainda não decidiu se irá prestar vestibular para a mais prestigiada universidade do país.
Filha de pedreiro e diarista, ela veio do interior da Bahia para São Paulo só para estudar, mas em alguns momentos ainda sente pouca confiança em si.
Já foi pior. Algo que a tem ajudado foi reencontrar sua identidade, diz.
“Eu tentava me parecer com uma pessoa branca. Alisava o meu cabelo, não passava batom para esconder minha boca, tentava deixar minha pele mais clara”, relata.
O que mudou essa chave foi o convívio com um professor e o mundo que ele lhe abriu ao apresentar os movimentos de slam —torneios de poemas falados— e um curso de formação, o Engaja, do Unicef (braço da ONU para a educação).
“Vi meninas negras se amando e pensei: por que eu também não posso?”, conta ela, que, para ajudar os tios com as contas, passou a trabalhar como trancista de mulheres com cabelos como os dela. “Identidade é uma coisa muito importante para a gente parar de se odiar”, diz.
O caso de Bruna ilustra o poder do exemplo para a autoestima dos jovens e o avanço rumo ao equilíbrio racial.
Segundo especialistas, as cotas raciais atuam nesse sentido ao transformar esses alunos em modelos para as futuras gerações de jovens negros e de baixa renda.
Em sua tese de doutorado concluído na Universidade de Wisconsin-Madison, a economista Ana Paula Melo constatou que 84% dos alunos que só ingressaram na Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo), em 2008, graças às cotas, eram os primeiros integrantes de suas famílias a cursar ensino superior.
O exemplo é também apontado como o grande legado das ações afirmativas por Silvio Gomes, 37, aluno de engenharia elétrica da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).
Em algumas de suas aulas, ele chega a ser o único pardo em uma sala de 40 alunos.
“Ainda temos muito poucos engenheiros e programadores negros. Quando um preto tem oportunidade, isso muda a visão das outras pessoas sobre o que todos podemos fazer e ser na vida.”
Opinião semelhante tem José Vicente, da Faculdade Zumbi dos Palmares. “Acaba a desculpa das empresas de que não contratam negro porque não tem negro qualificado.”
Marcia Lima, professora do departamento de sociologia da USP e coordenadora do Afro-Cebrap, lembra que o sistema privado também tem papel importante na inclusão, uma vez que responde por três em cada quatro matrículas no país —e é justamente aí que há risco de retrocesso.
Desde 2016, as matrículas em cursos presenciais particulares estão em queda, tanto por causa da crise econômica como por causa do encolhimento do Fies, e a projeção do Semesp, o sindicato das mantenedoras, é que tenham despencado em 2020 na pandemia de coronavírus.
Análise do Semesp sobre microdados do Enem e do Censo da Educação Superior apontou uma diferença de 1,7 milhão de alunos entre os que compareceram a todos os dias da prova em 2018 e os que ingressaram em cursos presenciais no ano seguinte, ou seja, interessados no diploma que ficaram sem lugar na sala de aula. Desses, 77% são negros.
E, no sistema público, a participação de pretos e pardos, que tinha ultrapassado a de brancos em 2018, voltou a se igualar em 2019, mostram dados da Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE), analisados pela economista Ana Luiza Matos de Oliveira, professora da Flacso Brasil (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais).
Para ela, é uma consequência da crise econômica, que atinge com mais força as famílias negras, e do enxugamento da verba de assistência estudantil. “Pode ser um sinal de esgotamento das políticas públicas de acesso”, diz.
Negra e reitora da universidade federal do estado mais próximo do equilíbrio educacional no Ifer, Marcele Pereira ilustra os avanços e desafios da inclusão.
À frente da Universidade Federal de Rondônia (Unir), ela se vê no papel de uma referência importante para a juventude negra. Mas conta que não é com frequência que encontra pessoas com a sua cor de pele em espaços de elite.
“Vejo ainda muito em posições subalternas. Terminar uma graduação não significa encontrar espaço no mercado de trabalho”, afirma.
Para ela, é preciso ainda avançar muito. “O debate sobre a diversidade na pós graduação e entre os professores precisa ser encarado pela sociedade brasileira.”