Segundo especialista, a violência nas escolas reproduz a violência na sociedade, e não é um fenômeno isolado
A violência entrou de vez no currículo escolar dos amapaenses. Só que agora, infelizmente, em vez de um saudável e democrático conflito no campo das ideias, alunos, professores, diretores e funcionários precisam cada vez mais conviver com agressões, ameaças e abusos.
Não é preciso ir longe para se verificar tudo isso. Basta recorrer ao buscador do Google e pedir “violência nas escolas”.
Aparecem centenas de artigos, análises, denúncias, resumo de encontros e simpósios de especialistas em ciências da educação e do comportamento, além de livros inteiros, disponibilizados gratuitamente, na tentativa de analisar o problema e apresentar possibilidades de solução.
Se você for ao Youtube, vai encontrar coisa ainda pior: é imenso o acervo de postagens, contendo cenas às vezes alucinantes de violência destrutiva pura, com frequência captadas e publicadas pelas câmeras celulares dos próprios alunos. Há vídeos de brigas, de bullying, de quebra-quebras, de mutilações e até de assassinatos cometidos dentro das salas de aula e nos pátios das escolas. Exemplos disso são dois casos de agressão ocorridos recentemente em Macapá e Santana. Em uma escola localizada no bairro São Lázaro, um professor acabou no hospital após ser agredido por um estudante. O educador levou uma facada nas costas dentro da sala de aula.
Violência não é fenômeno isolado
“A violência nas escolas reproduz a violência na sociedade, não é um fenômeno intramuros isolado”, afirma a coordenadora de Ciências Humanas e Sociais da Unesco no Brasil, Marlova Noleto. Segundo a educadora, os ambientes escolares deixaram de ser lugares protegidos e muitos pais perderam a tranquilidade ao levar os filhos à escola.
Ela destaca que a ausência de regras claras de convivência entre alunos e professores contribui para o aumento da violência.
Para o professor da faculdade de Educação, Célio da Cunha, há uma profunda crise de valores humanos.
“A violência na escola vem da Idade Média, é uma prática inconcebível no século 21. A escola tem que refletir uma cultura de respeito, da merendeira ao diretor”, diz. Cunha defende que é preciso recuperar a dimensão humana da educação, que foi transformada em um negócio.
A educadora Marlova Noleto aponta para a importância de um bom clima na escola. “Na escola, aprendemos não só a ser, mas a fazer, a viver juntos e a conhecer. Um conjunto de regras e valores educam para a vida, não educam apenas no ambiente escolar”, acredita.
A especialista reconhece que, em primeiro lugar, é preciso que o professor goste do que faz. “Ensinar é um ato de amor e é sempre uma via de mão dupla.
É preciso estar aberto para ensinar e aprender”, aponta. “Na maioria dos casos, o aluno reproduz na sala de aula aquilo que vive em sua própria casa, no convívio com a família, e nas ruas. Há, de modo geral, uma crescente banalização da má educação, uma ausência de consciência de limites, uma violência instalada nos lares. Reflexo de um fenômeno que se alastra por toda a sociedade”, opina a matemática Nelma Pellegrini Franco, que amargou trinta anos de magistério em escolas públicas.
Uma constante
No início da semana que passou, a Escola Municipal Vera Lucia Pinon, localizada no Bairro Infraero II, Zona Norte de Macapá, paralisou as atividades. Os alunos da EJA (Educação de Jovens e Adultos), a comunidade e os funcionários têm receio de voltar às aulas. Tudo isso é resultado do aumento no número de assaltos, brigas de gangues, incluído invasão ao prédio da Escola. “No ano passado, a escola foi alvo de assaltos e arrombamentos. Os criminosos estão a cada dia mais audaciosos, ao aponto de invadir uma escola”, diz Jackson Correa diretor da Instituição.
Na segunda, 23 de março, o colégio mais uma vez foi alvo da criminalidade. Desta vez, quatro homens fizeram professores e alunos reféns. Celulares e notebooks foram furtados pelos criminosos. Esta semana, em Santana, uma passeata está sendo organizada para protestar contra os casos de violência também ocorridos nas escolas do segundo maior município do Estado. Na última quinta-feira à noite, alunos de uma faculdade particular localizada no centro da capital foram vítimas de um arrastão.
Estimular o respeito à diferença
Em muitos casos, a violência na escola é decorrente do medo de ser reprovado ou de ameaças que o aluno sofre em casa. Marlova Noleto diz que é preciso incluir as famílias no processo de educação e ajudar as crianças desde cedo a desenvolver um sentido ético. “Quando estimulamos nossos alunos a respeitar a diferença, estamos também evitando a violência”, observa. Em última instância, destaca Marlova, a educação deve propiciar também a satisfação dos alunos. “Se o processo de aprendizagem não trouxer também felicidade, dificilmente aprenderemos com qualidade”, afirma.
Para Miriam Abramovay, coordenadora da área de Juventude e Políticas Públicas da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais e coordenadora de pesquisas da Unesco (Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura), os conflitos são resultado de relações sociais ruins e da falta de diálogo. Pesquisadora do tema há mais de dez anos, Miriam defende a criação de políticas públicas de prevenção da violência escolar, diagnóstico dos problemas e a formação específica de professores: “Um bom professor é o que ensina bem a disciplina, mas também que sabe ser amigo, que sabe entender o que é ser jovem”.
Em recente entrevista, Miriam Abramovay diz que a escola deve ser espaço de proteção e não de violência:
– Aumentaram os casos de violência na escola?
Se você pegar os casos de violência em geral ou de mortalidade dos jovens, a situação é cada ano pior. Então, é óbvio que por um lado a escola recebe essa influência, mas por outro ela também produz violência, que são muito específicas do âmbito escolar.
– A ciberviolência e a divulgação de vídeos de violência na internet aumentaram a sensação de violência?
Eu acho que é uma questão muito importante e a escola não tem as ferramentas mínimas para poder prevenir esse tipo de violência. A escola é muito centrada em si mesma, no que pensam os adultos. Em segundo lugar, ela não sabe o que acontece na vida desse jovem. Colocar uma coisa na internet é uma forma de exibicionismo e nós vivemos numa sociedade do espetáculo. Isso tem um valor muito grande, principalmente para o jovem.
– O que motiva os atos de violência na escola hoje em dia?
Brigar, eles sempre brigaram, isso sempre aconteceu. Mas eu acho que estamos vivendo um fenômeno da exacerbação da masculinidade e da cultura da violência. Aparece aquele que é mais violento, que sabe brigar melhor. Eu digo masculinidade, mas é para garotos e garotas. Aí também entra o uso das armas, porque a arma é símbolo de força e de poder.
– Qual é o principal motivo do conflito entre professores, alunos e diretores?
Eu acho que as relações sociais ( aluno-aluno, aluno-professor e professor-diretor) estão muito ruins. Ainda acho que as mais complicadas são as relações com os adultos. Isso porque a escola é muito centrada nela mesma e muito pouco do que se propõe é dialogar com os jovens. Eu acho que isso cria um clima muito ruim. Nós estamos fazendo uma pesquisa e percebemos que o professor que os alunos mais gostam coincide com a matéria que eles mais gostam.
Ou seja, a relação entre o professor e os jovens ainda é muito importante. Um bom professor é o que ensina bem a disciplina, mas também o que sabe ser amigo, que sabe entender o que é ser jovem.
– Como combater a violência escolar em comunidades em que a violência já faz parte do cotidiano?
Uma escola que está num local de violência não obrigatoriamente é violenta. A escola tem uma violência de fora para dentro, mas tem a violência que ela produz. Então, você pode ter um lugar supertranquilo em que a escola é superviolenta. E vice-versa. A escola tem as suas próprias características, não é uma consequência direta do que acontece fora dela. Não obrigatoriamente a comunidade tem interferência nas relações entre os alunos, no racismo, na homofobia, em como os professores tratam os alunos, porque isso pode ser violência também. Se você tem uma concepção de violência como só a violência dura, que é a entrada de tráfico e de armas nas escolas, então você tem razão, quanto mais a comunidade é violenta mais a escola é violenta. Mas se você tem uma concepção de que violência é uma coisa mais ampla, que existe uma violência simbólica, não obrigatoriamente a comunidade vai fazer com que as relações sociais sejam piores. Dependendo dos professores, dos alunos, da relação com a família, a escola pode ser um lugar de proteção, independente do bairro ou da comunidade ser violenta ou não.
– Em que momento a polícia pode entrar na escola?
Está acontecendo um fenômeno hoje que é a judicialização da educação. Quer dizer, a escola joga para a Justiça seus principais problemas.
A polícia tem que entrar na escola quando a violência é dura, quando existe droga e armas dentro da escola. Senão, não existe nenhum sentido de a polícia estar dentro da escola. Mas está acontecendo o contrário, quer dizer, o conselho tutelar a toda hora é chamado por coisas mais banais que acontecem. O que a escola está dizendo é “eu não tenho autoridade de resolver os meus problemas e vou chamar a polícia para isso”.
– Qual é o papel do Estado na redução da violência nas escolas?
Eu acho que nós temos que ter uma política pública sobre esse tema, que abarque diagnósticos, formação de professores. Não adianta só ter pequenos programas, nós temos que ter políticas para a gente saber o que está acontecendo, depois pensar muito na formação de professores, para eles saberem o que fazer.
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