Faltam dados nacionais e ações de prevenção mais sistemáticas, especialmente em tempos de pandemia e assédio virtual, dizem especialistas
João Luiz Sampaio, colaboração para a CNN
No começo da manhã do dia 7 de abril de 2011, Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, invadiu a Escola Municipal Tasso da Silveira, no bairro de Realengo, no Rio de Janeiro. Armado, matou 12 adolescentes antes de tirar a própria vida. Vítima de bullying, como contaria mais tarde sua irmã, Wellington era introvertido. E, desde que deixou a escola, pesquisava sobre atentados terroristas e grupos religiosos.
“Só eu e Deus sabemos como é difícil para mim, até hoje, entrar em uma escola e falar sobre isso. Mas cada vez que esqueço, aceito o que aconteceu ali. E isso eu não posso fazer”, diz Adriana Silveira, que perdeu a filha Luiza, 12, naquela manhã.
Ela dirige a Associação Anjos do Realengo, que desde então trabalha na conscientização a respeito da violência em escolas. “O trabalho que a gente faz é uma forma de mostrar que aquelas mortes não foram em vão, que nossos filhos deixaram um legado”, afirma.
O massacre de Realengo comoveu o país e motivou ações institucionais. Em 2014, o Senado Federal fez de 7 de abril o Dia Nacional de Combate ao Bullying e à Violência na Escola. Em novembro de 2015, a Lei 13.185, conhecida como Lei do Bullying, instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática. E, em 2018, uma alteração na Lei de Diretrizes de Bases e Educação determinou o estabelecimento de medidas de conscientização e de prevenção a todos os tipos de violência nas escolas.
Para especialistas, mesmo com essas iniciativas, a questão está longe de ser superada. Uma pesquisa realizada em 2019 em 119 escolas públicas e privadas pelo Projeto São Paulo para o Desenvolvimento Social de Crianças e Adolescentes, iniciativa da USP (Universidade de São Paulo) em parceria com a Universidade de Cambridge, mostrou que 28,7% dos adolescentes já foram vítimas de bullying – os índices são maiores quando se considera grupos como homossexuais (42,1%), deficientes (39,7%) e obesos (31,5%).
Na tela
Em tempos de ensino à distância, por conta da pandemia, a violência escolar não arrefece, com o cyberbullying ganhando novas dimensões. “É uma forma muito grave de bullying, pois muitos alunos, em especial aqueles com algum transtorno de aprendizagem, acabam se sentindo à parte, isolados, e se tornam alvos. E isso sem ter o vínculo de proteção que vem do contato com os professores”, afirma Debora Muszkat, psiquiatra e coautora do livro “Psiquiatria da Infância e da Adolescência”.
A psicóloga Rafaela Gualdi, especializada no trabalho com crianças e adolescentes, concorda. “É o tipo mais perigoso, devastador e silencioso de bullying, pois se multiplica muito rapidamente e é difícil de identificar longe do ambiente escolar”, afirma.
O cyberbulling é anterior à pandemia. Uma pesquisa feita pela Intel Security no Brasil em 2015, com crianças e adolescentes de 8 a 16 anos, mostrou que 21% dos entrevistados afirmavam ter sofrido cyberbulling, enquanto 24% diziam ter realizado atividades consideradas como cyberbulling, como zombar de alguém por conta da aparência ou sexualidade ou então por meio de ameaças.
Três anos depois, segundo uma pesquisa da Ipsos, 30% dos pais ou responsáveis diziam ter conhecimento de que os filhos envolveram-se ao menos uma vez em casos de cyberbullying. Em 2019, um levantamento feito pela Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) em trinta países mostrou que um em cada três jovens disse ter sido vítima de bullying pela internet.
Com o isolamento, porém, as interações com os colegas de escola se dão essencialmente a partir de casa, de forma virtual. Torna-se fundamental o papel dos pais, observando as crianças e adolescentes, diz Gualdi. “As escolas têm tentado realizar palestras, conversas sobre esse assunto, mesmo à distância. Elas estão conscientes desse problema. Mas o fato é que, em casa, os pais devem buscar monitorar a circulação dos filhos na internet e, claro, observar o comportamento.”
Para Muszkat, vale ficar atento para ver se eles abrem suas câmeras, participam das aulas. “Tenho visto muito entre pacientes uma perda de vínculo, um distanciamento, um isolamento que pode levar a consequências graves para eles”, afirma.
Maior abertura para o tema
O termo bullying foi cunhado pelo psicólogo sueco Dan Olweus nos anos 1970 e refere-se, como explica Muszkat, a um comportamento que tem intencionalidade, ou seja, uma intenção de agressão, repetida de forma sistemática. “Ele costuma acontecer a partir de um desbalanço de poder entre as pessoas envolvidas, que pode vir de uma questão física, do mais forte para o mais fraco, mas também pode envolver questões sociais, raciais, diferentes tipos de vulnerabilidade.”
Thila Pedrozo Lima, socióloga e educadora, especialista em educação inclusiva, explica, porém, que a questão ganhou maior importância a partir do final do século XX. “Esse tipo de agressão sempre aconteceu, mas passou a ser estudada de fato mais recentemente, a partir do momento em que a educação começou a olhar a questão da inclusão e da diferença como centrais para uma mudança de paradigma”, afirma.
Mas o termo bullying não é uma unanimidade. Miriam Abramovay, professora da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais e autora de livros como “Escola e Violência” e “Cotidiano das Escolas: Entre Violências”, fala em “violência escolar”. “Quando você tenta abarcar tudo em um termo ele acaba correndo o risco de não significar nada”, diz, explicando que há muitos fatores envolvidos no processo, como o racismo, a homofobia e a violência que vem de fora da escola.
Independentemente do nome, a questão hoje é debatida de maneira mais aberta. As escolas dão mais relevância ao tema, seja na formação dos professores, que precisam estar preparados para identificar agressões e agir, seja na promoção de debates com os estudantes, tratando de valores essenciais, como o respeito à diferença, a empatia, a inclusão, acredita Rafaela Gualdi.
“É um processo ainda individual, cuja intensidade varia de escola para escola, mas que coloca o foco nas habilidades socioemocionais dos jovens, na capacidade de identificar emoções e saber comunicá-las de outra forma, tanto no caso do agressor quanto da vítima.”
Para Muszkat, encarar o assunto é fundamental. Quanto mais se discute essa dinâmica de agressão, maior será a abertura para que as vítimas falem disso na escola ou em casa. E para que exista uma mudança de percepção também de outros personagens da agressão, aqueles que assistem e, com seu silêncio, acabam reforçando o comportamento do agressor.
“A aceitação em um ambiente escolar nunca vai ser generalizada. Mas a mudança de percepção sobre esse processo é determinante na prevenção, como é a formação dos professores, que podem trabalhar de forma generalizada e não pontual, criando discussões sobre o tema e não apenas resolvendo casos específicos depois que acontecem”, acrescenta Muszkat.
Da mesma forma, diz Thila Pedrozo Lima, é preciso compreender o problema da violência na escola como uma questão familiar. “A família também precisa ser envolvida nesse processo. Se toda a comunidade escolar não muda, não há como exigir da criança que resolva a questão sozinha. A escola reproduz formas de violência que estão na sociedade. E falar em prevenção é tratar disso também”, afirma.
Uma realidade ainda desconhecida
Prevenção é a palavra-chave. Há dez anos, Adriana Silveira percorre escolas para realizar rodas de conversa com professores e alunos sobre o massacre de Realengo. “Salvar vidas é tocar as pessoas para que as tragédias não aconteçam, é defender a necessidade de um olhar cuidadoso para as crianças e também para os professores, que muitas vezes não são valorizados e também sofrem violência”, afirma.
Para isso, são necessários dados para guiar programas de conscientização. Foi com esse objetivo que surgiu o Projeto São Paulo para o Desenvolvimento Social de Crianças e Adolescentes. “Falar em prevenção é, antes de mais nada, identificar os fatores de risco e de proteção. Isso se faz com a coleta contínua de dados que permitam ter bons diagnósticos e planejamentos”, explica a professora Maria Fernanda Peres, coordenadora do projeto.
A pesquisa abordou a realidade das escolas da cidade de São Paulo. Para Abramovay, que já realizou estudos em nove capitais do país, ainda faltam levantamentos de escopo nacional. “Eles são importantes, mas não podemos dizer que representam o Brasil como um todo. E isso é um problema porque para criar programas eficientes temos que levar em consideração realidades específicas.”
Thila Pedrozo Lima reflete que a realidade racial em São Paulo, por exemplo, é diferente da de outros estados. Com a experiência de trabalho na Fundação Casa, em São Paulo, ela chama atenção até mesmo para diferenças entre instituições de perfis diferentes. “Lá, há entre os meninos uma hierarquia que torna o bullying muito raro, o que já não acontece entre as meninas”, afirma.
Em nota, o Ministério da Educação afirma que a Base Nacional Comum Curricular determina a escola como “espaço de aprendizagem e de democracia inclusiva” e orienta professores a debater e posicionar-se frente aos discursos religiosos e práticas de intolerância, discriminação e violência. A base também contempla o ambiente digital, referindo-se à necessidade de desenvolvimento “de habilidades e critérios de curadoria e de apreciação ética e estética, considerando, por exemplo, a profusão de notícias falsas, de pós-verdades, do cyberbullying e de discursos de ódio nas mais variadas instâncias da internet e demais mídias”.
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