Confira entrevista de Miriam Abramovay, coordenadora de Estudos e Políticas Sobre a Juventude da 𝐅𝐥𝐚𝐜𝐬𝐨 𝐁𝐫𝐚𝐬𝐢𝐥, sobre violência escolar após um ano do episódio em que atiradores mataram oito pessoas numa escola de Suzano, na Grande São Paulo.
Por Lu Sudré, do Brasil de Fato
“Era para ser um dia normal”. As poucas palavras que ainda estão registradas na única parte que resta do antigo muro da Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, carregam todo sentimento de incredulidade e dor de alunos, funcionários e professores, que, há um ano, seguem reunindo forças para superar o trágico episódio que chocou o país.
Na manhã daquele 13 de março de 2019, Guilherme Taucci Monteiro, de 17 anos, e Luiz Henrique de Castro, de 25 anos, ex-alunos do colégio, entraram encapuzados pelo portão principal da escola e executaram um brutal ataque a tiros.
Oito pessoas morreram, incluindo o tio de um dos atiradores, atingido antes do ataque à escola, e outras 11 ficaram feridas. Após a chacina, Guilherme atirou em Luiz Henrique e cometeu suicídio em seguida, totalizando dez mortos.
Rhyllary Barbosa, de 16 anos, se lembra de cada detalhe daquele dia. Dos barulhos de tiro, das pessoas correndo, da força que precisou ter quando cruzou Luiz Henrique no corredor, com quem teve um conflito corporal por alguns segundos.
“Continua na mesma neurose como se só tivesse passado um mês. O ano passou tão rápido que parece que foi recente, as coisas continuam. Aquele turbilhão de pensamentos e de sentimentos ainda estão aqui”, desabafa.
Lutadora de jiu-jitsu, Rhyllary firmou o pé no chão para não ser derrubada pelo jovem. Ela se orgulha em dizer que também é a prática do esporte, que a salvou naquele momento, que a ajuda a lidar com o trauma causado pelo episódio.
Rhyllary acredita que foi a dedicação aos treinos e o acompanhamento psicológico que a fez se manter estável e, dia após dia, superar o que aconteceu. Ela procurou uma das terapeutas que foram ao colégio prestar assistência após o ataque e foi encaminhada para uma Unidade Básica de Saúde (UBS) de seu bairro.
“Aquele turbilhão de pensamentos e de sentimentos ainda estão aqui”, desabafa ex-aluna da E.E. Raul Brasil / Foto: Lu Sudré
“Tem pessoas que conseguiram superar, estão conseguindo caminhar e outras que continuam em uma tristeza profunda. Naquela saudade, naquela angústia. Tem gente que entrou em depressão”, lamenta Rhyllary.
A reforma do espaço, realizada em parceria com o setor privado, foi uma das principais ações tomadas pelo governo estadual. O objetivo é dar uma nova cara ao Raul Brasil e possibilitar aos alunos uma nova relação com o local.
Os mais de dois mil estudantes da escola estão alocados desde outubro do ano passado em salas do campus da Faculdade Piaget, distante a cerca de 1 km do colégio. Eles só poderão conhecer as novas instalações em abril, quando a reforma terminará.
A entrada principal da escola, na rua Otávio Miguel Silva, por onde os atiradores tiveram acesso, foi desativada. Os estudantes entrarão no colégio pela rua José Garcia de Souza, onde outro corredor será construído para uso exclusivo de pessoas externas à comunidade escolar.
O projeto de revitalização da escola inclui a construção de novas áreas comuns, de estudo e de convivência, com um orçamento de R$ 3,1 milhões. Segundo a Secretaria de Educação (Seduc) do governo paulista, desse valor, R$ 2,7 milhões está sendo patrocinado por empresas por meio do Instituto Ecofuturo. A Seduc, por sua vez, investiu mais R$400 mil para a compra de mobiliário e equipamentos.
Apesar de ter uma memória afetiva com o antigo colégio, onde estudou desde os 13 anos, para Rhyllary, a reforma será positiva. “Não é legal ficar em um ambiente onde você viu coisas horríveis acontecerem lá e toda vez que olhar qualquer canto, qualquer poeira no chão, lembrar de tudo que aconteceu. Prejudica bastante o psicológico”.
De acordo com a prefeitura do município, a demanda direta relacionada à saúde mental do Raul Brasil foi absorvida desde o início por profissionais da Rede de Atenção Psicossocial (Raps). Ao longo do último ano, foram realizados mais de 14 mil atendimentos individuais e 2.912 atendimentos em grupo em todo o município, incluindo pessoas envolvidas direta e indiretamente com o ataque, assim como indivíduos que procuraram a rede por outros motivos.
Ele acrescenta que o medo de algo parecido acontecer novamente ainda é constante, não só entre os estudantes do Raul Brasil, mas em todas as escolas de Suzano. Na opinião de Marco, “o clima da cidade pesou” na semana que completa um ano do massacre e é inevitável não lembrar daquele dia em que fugiu dos tiros pelo portão dos fundos.
“Tem gente que ainda sofre com isso. Quando batem na porta, quando o vento bate a porta, tem gente que começa a chorar [lembrando dos tiros]. É bem difícil. Tem dia que voltam as lembranças, mas tô levando”, diz, após assistir às aulas na Faculdade Piaget durante toda a manhã.
A urgência de outro modelo
Inspirado no massacre de Columbine – conforme aponta a investigação – ocorrido há 20 anos e planejado por dois ex-estudantes da Columbine High School, nos Estados Unidos, o atentado em Suzano também foi pensado com meses de antecedência e trouxe à tona uma discussão pública sobre fóruns extremistas na internet, e, principalmente, sobre a violência dentro e fora do espaço escolar.
Na opinião de especialistas ouvidas pelo Brasil de Fato, fatores estruturais que podem ter levado à tragédia continuam presentes na sociedade brasileira. Entre eles o não espaço para a expressão de subjetividades no ambiente escolar.
Segundo a psicóloga Luciana Szymanski, em casos como o de Suzano geralmente se discute questões de ordem pessoal dos jovens que cometeram o atentado, que são importantes, mas desconsidera-se que os indivíduos são construídos também pelos espaços em que estão inseridos, onde desenvolvem sua identidade.
Exatamente por isso, a docente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUIC-SP) e coordenadora do grupo de pesquisa Práticas Educativas e Atenção Psicoeducacional na Escola, Família e Comunidade (Ecofam), argumenta que a Escola deve se responsabilizar por uma sociedade menos violenta e construir espaços de conversas e trocas constantes sobre alegrias, tristezas e violências que atingem crianças e adolescentes em todas as idades.
Entre elas o racismo, o machismo, o bullying, do qual um dos atiradores foi vítima durante o colégio, assim como outras formas de preconceito.
“Nossas pesquisas mostram que quando se investe em espaços de diálogo, quando se tem lugar para falar sobre as coisas na escola, se diminui possibilidades de resolução de conflito via violência”, afirma Szymanski.
A especialista ressalta que é urgente mudar a percepção de que é preciso sanar conflitos acima de qualquer coisa, atropelando um processo que é inerente a espaços coletivos.
“A questão não é existir ou não o conflito e sim a forma com a qual lidamos com ele. É possível conversar? Existem pessoas na escola que escutem o sofrimento desses meninos, também individualmente, mas não só? Existe um espaço para se conversar sobre gênero, por exemplo? Em que se fala sobre nossa sociedade patriarcal, em que se fala sobre masculinidade tóxica? Existe um lugar que se fale sobre isso?”, questiona a psicóloga.
“Um bom trabalho psicológico faria essa palavra circular de modo que não se tenha como única opção a violência como solução”, acrescenta, defendendo um ambiente educativo que realmente cuide das pessoas.
A socióloga Miriam Abramovay, que estuda o tema da violência nas escolas há mais de duas décadas, também analisa que a forma padronizada e distante em que as relações se dão hoje fez com que a escola Raul Brasil não percebesse algo de errado durante a passagem de Guilherme e Luiz Henrique pela instituição.
“É importante que a escola tenha um clima onde se possa falar o que está acontecendo, que se possa perceber. Um dos grandes problemas da escola é um clima que não é amigável, em que as relações não são abertas para falar sobre o cotidiano”, comenta.
Coordenadora da área de Estudos e Políticas sobre a Juventude na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), Abramovay argumenta que iniciativas de diálogo podem e devem acontecer nas escolas de forma particular, como é o caso do Raul Brasil, mas devem ser uma política pública, de fato.
“São questões que devem ser pensadas em conjunto, uma construção coletiva. Hoje não existe. Por mais que se fale que a questão da violência é importante, ela aparece como importante quando acontecem massacres como esse ou alguma coisa grave, quando um professor apanha”, critica, não afastando a possibilidade de outro ataque como o de Suzano acontecer.
“Enquanto não for mais falado, mais conversado, enquanto não tivermos políticas públicas, é possível sempre. Não só no Brasil como em qualquer lugar”, afirma.
Joana avalia que um conjunto de fatores são responsáveis pelo atentado e cita como exemplo a falta de assistência social à família dos atiradores, que estavam em uma situação vulnerável, assim como a ausência contínua do combate ao bullying e à falta de segurança nas escolas.
No dia do ataque, ela foi avisada sobre o que estava acontecendo pela mãe de uma amiga de sua filha e seguiu em direção ao Raul Brasil, enfrentando o caos que crescia conforme a notícia se espalhava.
“A cidade tava um inferno. É uma coisa que eu não vou esquecer nunca”, comenta a trabalhadora.
Com 16 anos, a filha de Joana faz acompanhamento psicológico no Centro de Referência e Apoio à Vítima (Cravi), que foi instalado na cidade de forma definitiva dez meses após o ataque. O assunto em casa, entretanto, é evitado pela jovem, que se negou a participar das rodas de conversa na Raul Brasil.
“Ela não quis ir. Ela falou que o governo deveria ter feito essas rodas de conversa antes de acontecer a tragédia e em todas as escolas, não depois do que aconteceu”, relata a mãe. “Eu, até hoje, nunca perguntei pra minha filha como foi em detalhe. Sei porque presenciei a conversa com a psicóloga, mas eu chegar e perguntar, não tive essa coragem”, conta.
Preocupada, Joana diz ainda que sua filha “deixou escapar” que no dia do ataque demorou para acreditar que de fato era um tiroteio. Como Guilherme e Luiz Henrique estavam com máscaras, a jovem imaginou que era uma ação para promover a “noite do terror” de um famoso parque de diversões. “Ela não tá bem não. Não sei quando vai ficar bem”, lamenta Joana.
Os casos se repetem
Desde 2002, ao menos oito escolas sofreram atentados em que alunos ou ex-alunos armados abriram fogo contra estudantes e funcionários em diferentes estados do país. As ações deixaram um total de 28 mortos e 41 feridos, conforme monitoramento do Instituto Sou da Paz.
Em metade desses casos, os jovens atiradores utilizaram armas que estavam armazenadas em suas casas. Natália Pollachi, coordenadora de projetos da organização da sociedade civil que atua na área da segurança pública, afirma que diversos fatores que levaram à tragédia de Suzano ainda estão presentes e até mesmo pioraram, a exemplo da facilitação para o porte e posse de armas defendida pelo governo Bolsonaro desde o início da gestão.
“Infelizmente o que temos visto do ano passado para cá é uma política de flexibilização desse acesso. O que estamos percebendo é que, na verdade, o governo federal vai no sentido contrário ao que desejaríamos com base no que foi mostrado nesse episódio. Há a flexibilização tanto da quantidade como a possibilidade de comprar armas para mais pessoas, mas também os tipos de armas. Armas com potencial letal maior tem sido permitidas a mais categorias de cidadãos”, critica Pollachi, que considera a resposta do governo ao episódio como decepcionante e contraprodutiva.
Entre outros aspectos que para a especialista estimulam a violência nas escolas e podem incentivar massacres estão o discurso de ódio e intolerância de diversos setores da sociedade, insuflados por posicionamentos de Jair Bolsonaro.
“Vemos casos cada vez mais frequentes de pessoas que colocam simulacros de armas nas mãos de crianças. O próprio presidente pegando criança e fazendo arminha na mão. Quando falamos de réplicas desses simulacros, não são armas de brinquedos, coloridas, que disparam água. São armas feitas para parecerem armas reais. Quando se coloca isso na mão de uma criança e fala pra ela se posicionar na posição de tiro, é a simulação de um tiroteio, não é uma brincadeira”, reprova a porta-voz do Sou da Paz.
Militarização
Em dezembro do ano passado, Bolsonaro assinou um decreto para militarizar 216 escolas públicas em 4 anos, uma de suas principais bandeiras de campanha. O Ministério da Educação (MEC) afirmou que, em 2020, destinará R$54 milhões para unidades atendidas pelo Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares, cujo projeto-piloto terá como alvo 19 instituições da região Norte, 12 do Sul, 10 do Centro-Oeste, oito do Nordeste e cinco do Sudeste.
Miriam Abramovay, da Flacso, condena a defesa das escolas militarizadas, principalmente em nome da segurança. “Estamos em um momento em que a arma é reificada e existe uma proposta de militarizar a escola, como se os militares e as policias pudessem resolver os problemas que ocorrem no cotidiano da escola. Toda a política pública tem que ser baseada em conhecimentos concretos da realidade, em diagnósticos, que conte com todos os atores sociais, alunos, funcionários, professores e diretores”, comenta.
As defesas apresentadas em nível nacional estão sendo copiadas nos estados. Após o ataque na Raul Brasil, por exemplo, além da prefeitura de Suzano instalar alarmes sonoros e de botões de pânico em todas as 75 unidades escolares do município, a secretaria estadual de Educação do município criou um “gabinete integrado de segurança escolar”, em que há a participação da Polícia Militar e da Secretaria de Segurança Pública (SSP-SP). O órgão alega que um relatório com os resultados da ação será publicado nos próximos meses.
Na Escola Estadual Caetano de Campos, na região central da cidade de São Paulo, um policial da reserva permanece dentro do colégio no período das aulas, como parte do projeto-piloto.
Assim como Abramovay, Natália Pollachi é crítica à política. “A escola não pode ser um lugar de pessoas armadas, não podemos levar isso pra lá e acreditar que a resposta para a violência seria uma disciplina militar, que traz uma série de questionamentos pedagógicos. Vemos esses comportamentos e tendências com preocupação”.
Investigação
Meses após a tragédia, três homens foram detidos por fornecerem as armas e munições aos jovens. Em fevereiro deste ano, no entanto, Cristiano Cardias de Souza, Geraldo de Oliveira Santos e Adeilton Pereira foram soltos da Penitenciária II de Tremembé, onde cumpriam prisão preventiva, e estão em liberdade provisória.
Neste cenário, a coordenadora do Instituto Sou da Paz reforça a análise de que, um ano após o episódio, é preciso fortalecer ações para que as tragédias não continuem a acontecer.
“Não é o caso de gerar pânico, porque são eventos raros no Brasil, mas é um aprendizado para ficarmos muito atentos aos sinais de alunos que estejam passando por algum problema, que precisam de apoio em casa ou na escola. E também da investigação, de como levar essa responsabilização para a cadeia de fornecimento e de estímulo que vem dessa redes, de fornecimento de armas e munições. Seria importante que a investigação se estendesse atrás dos fóruns da internet onde isso [violência] é estimulado, onde é abertamente aplaudido”, finaliza Pollacchi.
*Nome foi alterado a pedido da entrevistada
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