Pais adeptos do ‘homeschooling’ afirmam que seus filhos ganham em autonomia e pensamento crítico, mas falta de regulamentação preocupa especialistas tanto aqui como nos EUA, onde caso da família Turpin renovou debate sobre o tema.
As três crianças acordam às 7h, tomam café da manhã e preparam seu material escolar. Mas, em vez de irem para escola, sentam-se à mesa da sala. Enquanto um estuda português, o outro pode estar fazendo lições de matemática, sob a supervisão da mãe ou do pai caso as lições sejam difíceis. Fazem orações e, eventualmente, todos se reúnem para assistir a um documentário ou ir ao museu. À tarde, frequentam aulas de balé, violão ou esportes.
A família, de São Carlos do Paraná (PR), pratica a educação domiciliar plenamente há um ano. Assim como em outras estimadas milhares de famílias brasileiras, a mudança ocorreu quando os pais acharam que os filhos não se adaptavam bem à escola tradicional.
“O mais velho não conseguia aprender matemática e chegava em casa chorando”, conta à BBC Brasil a pedagoga Iliani da Silva Vieira, de 37 anos, mãe de três filhos em idade escolar – de 15, 13 e seis anos – e de mais duas crianças, de 3 e 1 ano. “Minha filha do meio também reclamava de dores de cabeça por causa do barulho da escola. Tinha dificuldade em se concentrar.”
Iliani e o marido decidiram educar as crianças em casa em tempo integral depois de o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso acatar, em dezembro de 2016, um recurso extraordinário sobre o tema e determinar que fossem suspensos todos os processos judiciais relacionados à educação domiciliar até que a corte tome uma decisão final a respeito, algo que ainda não tem prazo para acontecer.
Na visão de Iliani e de outros pais, a decisão de Barroso deu às famílias segurança, mesmo que temporariamente, para aderir ao homeschooling.
Apesar disso, Iliani foi surpreendida, nas últimas semanas, com uma denúncia do Ministério Público local e uma decisão da Justiça do Paraná obrigando-a a rematricular os filhos na escola, sob pena de perder a guarda deles. A família recorre e contesta a medida judicial, argumentando que ela fere a suspensão determinada pelo Supremo.
Esse modelo vive, segundo especialistas, um grande “limbo” no Brasil: não há leis específicas nem proibindo nem regulando a educação domiciliar.
Na visão do Ministério da Educação e de diversos juízes, porém, deixar de matricular crianças na escola fere o Estatuto da Criança e Adolescente, a Lei de Diretrizes e Bases e a própria Constituição, configurando abandono intelectual. Além disso, críticos afirmam que, sem frequentar um colégio, as crianças são privadas da diversidade – e, sobretudo, da tutela do Estado.
Já para pais que praticam o homeschooling, o modelo aguça o interesse das crianças e livra-as tanto das distrações quanto das falhas do sistema educacional brasileiro.
“Em casa, é mais fácil eles quererem aprender”, diz Iliani sobre os três filhos mais velhos. “Sem a pressão causada pelos professores que rotulam as crianças, o aprendizado flui. Ajudamos as crianças com a leitura, algo que a escola não faz de uma forma ampla. Os três estão mais curiosos e esforçados. Até detalhes, como a letra, melhoraram.”
Críticas à escolarização
A Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned) calcula haver no Brasil entre 5 mil a 6 mil famílias educando os filhos em casa.
“Essas famílias têm em comum uma crítica severa à escola e a escolarização”, explica à BBC Brasil Maria Celi Chaves Vasconcelos, professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e autora de tese de doutorado sobre o tema.
“Isso pode ter muitas motivações, por exemplo religiosas, de a escola ensinar diferente da fé que a família professa; econômicas, de pagar-se impostos sem ter educação (pública) de qualidade; de dificuldade da escola em integrar a criança com deficiência ou pela dificuldade de adaptação da criança ao processo escolar”, explica.
“Geralmente são pais preocupados com a educação dos filhos e que fazem disso um projeto de vida. Abrem mão de empregos melhores para ficar pelo menos um turno com os filhos em casa e assumir o controle global do processo de educação deles”, defende Ricardo Iêne Dias, presidente da Aned, que educou os dois filhos em casa depois de eles sofrerem bullying na escola onde estudavam, na região metropolitana de Belo Horizonte.
‘Ensinar a aprender’
Dias explica que o modelo não exige que o pai e a mãe dominem todo o conteúdo escolar, nem que sigam a estrutura de disciplinas e conteúdo tradicionais: “Eles passam a ser mediadores – não precisam saber tudo, mas sim saber ensinar seu filho a aprender e a se tornar um autodidata. As crianças também fazem cursos esportivos, de idiomas e Kumon, por exemplo”.
Muitos pais contam com a ajuda de telecursos e da internet, mas também aproveitam momentos do cotidiano familiar – assar um bolo ou visitar um parque, por exemplo – para ensinar conceitos.
Dias afirma que o mais importante é estimular as crianças a interpretar textos e desenvolver raciocínio lógico para que ganhem autonomia. E que a carga horária reduzida é compensada pela ausência das interrupções ocorridas nas escolas.
“Os professores costumam passar muito tempo tentando acalmar a turma e não conseguem dar atenção individualizada. Em casa, as distrações são menores e não precisamos interromper a aula de matemática (porque deu o horário). Se está indo bem, continuamos.”
A principal referência são os Estados Unidos, onde a prática é reconhecida e também cresce: há estimativas de que cerca de 1,7 milhão de crianças sejam educadas em casa por lá.
A regulação depende de cada Estado: alguns exigem que as famílias se registrem no distrito escolar e especifiquem o que vai ser ensinado; outros não. E também lá isso é alvo de debate, o qual cresceu em janeiro quando veio à luz a história do casal Turpin, acusado de ter mantido os 13 filhos em cativeiro sob condições degradantes, durante anos.
Os Turpin haviam feito um registro de educação domiciliar no Departamento de Educação no Estado da Califórnia, onde não há nenhuma supervisão estadual para o homeschooling. Essa falta de controle, para os críticos, teria dificultado a descoberta do caso.
“O ensino domiciliar não dá liberdade às crianças, mas sim aos pais”, disse à emissora CNN a porta-voz da Coalizão para a Educação Domiciliar Responsável, Rachel Coleman, cobrando regulamentação mais rígida.
Normas?
Dar salvaguardas às crianças é justamente o que torna importante uma regulamentação – seja favorável ou contrária – para a educação domiciliar aqui no Brasil, defende Vasconcelos, da Uerj.
“Não dá para trabalhar caso a caso, dependendo de cada comarca ou cada juiz. Há uma lacuna: o homeschooling, como está hoje, é um risco para as famílias e sociedade como um todo. Tem que ter uma relação instituída com o Estado. Não pode se limitar a tirar as crianças da escola. No momento, não conseguimos nem sequer ter um censo dessas crianças. O Estado não permite que uma mãe faça com seu filho o que ela quer. É preciso normatizar o processo”, argumenta.
Tramitam na Câmara dos Deputados dois projetos de regulamentação do ensino domiciliar, de autoria de Lincoln Portela (PRB-MG) e Eduardo Bolsonaro (PSC-SP), que preveem que as crianças educadas em casa sejam submetidas a avaliações periódicas, tal qual os alunos matriculados em escolas. Os projetos estão em debate na Comissão de Educação da Casa.
No que diz respeito a avaliações do aprendizado, crianças educadas em casa que queiram obter certificados de ensino fundamental e médio para se matricular na universidade prestam o Encceja (Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos), explica Dias, da Aned. Ele diz que as famílias estão abertas à regulamentação, mas é cético quanto à capacidade de supervisão do Estado.
“Não acho que o governo tenha competência técnica e logística para isso. O que ele vai avaliar?”, questiona.
Um exemplo de regulamentação vem de Portugal, país que permite a educação domiciliar, mas exige que as crianças sejam matriculadas no sistema de ensino, visitadas em casa por assistentes sociais e submetidas a avaliações constantes. “Se não passarem nas provas, elas precisam voltar para a escola”, explica Vasconcelos, que estudou o modelo português.
Mas as críticas ao homeschooling vão além da questão regulatória. Muitos argumentam que a educação em casa cobra um preço em socialização e em acesso das crianças a pensamentos diferentes dos da família.
“A escola tem o papel de abrir para o mundo, e uma de suas características deve ser a diversidade”, diz Telma Vinha, professora da Faculdade de Educação da Unicamp.
“A família tem valores privados. Se a família defende, por exemplo, o preconceito e o sexismo, é preciso que haja um lugar onde isso seja pensado de outra maneira. Pode ser que a escola esteja despreparada (para esse papel), mas há cada vez mais projetos de gestão democrática e combate ao bullying, por exemplo. É justamente na troca de experiências que as crianças aprendem. Mais do que trancar as crianças, vamos juntos melhorar a escola e exigir mais dela”, opina Vinha.
Mas para Dias, da Aned, a questão é que, na prática, existe “uma escola ideal e uma escola real”.
“Meu filho, quando tinha sete anos, apanhava na escola por ser baiano”, conta. “Essa socialização eu não quero. Está muito longe de haver o exercício de tolerância nas escolas. Eu ouvi do MEC que a escola é o espaço do aprendizado e do exercício da diferença. Mas se fosse isso mesmo, talvez meu filho ainda estivesse na escola.”
Ele defende ainda que crianças educadas em casa se destacam em trabalho em equipe e empreendedorismo porque “conseguem pensar fora da caixa por não terem passado pelo padrão massificado de aprendizado. Elas aprendem a interpretar textos e participam mais da vida domiciliar, onde a educação acontece o tempo todo”.
Iliani, a mãe de cinco crianças em São Pedro do Paraná, acredita que “a primeira socialização da criança deve ser junto à família. É a partir daí que ela vai conseguir socializar com as pessoas de fora. O que vemos hoje na escola é criança se batendo e agredindo professor ou então só no tablet e no celular. Que convívio é esse?”.
Para Vasconcelos, o mais urgente é que as famílias adeptas dessa prática sejam sujeitas a alguma relação formal com o Estado.
“Não posso concordar que as crianças sejam retiradas da escola na infância ou na adolescência e fiquem em homeschooling sem nenhuma satisfação ao Estado do que está sendo trabalhado”, argumenta. “Não quer dizer que a fiscalização vai alterar (eventuais problemas). Mas pelo menos institucionaliza uma modalidade e (cria formas) de as crianças demonstrarem o que estão aprendendo.”
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