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Por Gabriela Fujita, UOL
Imagine esta situação: no dia em que Maria é morta, a polícia só chegou ao local do crime horas após o assassinato. Ela vivia sozinha. O corpo cheio de facadas, com as roupas rasgadas, estava jogado em um dos quartos da casa onde ela morava desde a assinatura do seu divórcio. Os vizinhos, que pouco sabiam a respeito da vítima, ligaram para o 190 depois que ouviram gritos de uma intensa discussão.
O procedimento padrão foi seguido pelos policiais e, depois do trabalho de perícia, o corpo foi removido para o IML (Instituto Médico Legal). Na delegacia, o crime foi registrado como homicídio simples. O autor teve tempo de fugir sem ser notado e, dali por diante, ficaria a cargo da investigação revelar o que tinha acontecido.
Em um primeiro contato com a cena do assassinato, não foram notadas pistas que poderiam ter levantado suspeita de imediato sobre alguém muito próximo a Maria: seu ex-marido, com quem ela já não convivia havia cerca de um ano, mas que a ameaçava com frequência, ainda inconformado com o fim do casamento.
O caso acima, fictício, serve para ilustrar a história de muitas brasileiras assassinadas em que os indícios de feminicídio — quando a vítima é morta por ser mulher — acabam se perdendo no decorrer da investigação. Com isso, os criminosos podem acabar condenados a uma pena menor.
Quando o feminicídio deixa de ser detectado, o agressor não é punido como manda a lei de 2015 que tornou esse tipo de homicídio um crime hediondo (a pena máxima passa de 20 a 30 anos de prisão, por exemplo), e a ocorrência entra para a estatística policial com gravidade inferior à que deveria ter.
A partir de dados recolhidos nas polícias civis e enviados pelas Secretarias de Segurança Pública, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública chegou ao número de 4.657 mulheres mortas no país em 2016, sendo 585 ocorrências de feminicídio –uma taxa de 12,6% do total. As informações detalhadas por Estado estão na 11ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que pela primeira vez traz o recorte de feminicídios, com a sugestão de uma ampla subnotificação de casos.
“Há indicadores de que a violência [contra a mulher] é maior do que isso [o número apresentado pelas secretarias estaduais]”, diz Cristina Neme, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Alguns Estados no anuário têm números bem abaixo do esperado, porque a informação foi extraída de um boletim de ocorrência que só tem o primeiro registro do homicídio.”
Este número é bem menor do que o levantado pelo CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público). De acordo com relatório publicado pelo órgão, foram instaurados no país 2.925 inquéritos policiais com a tipificação (indicação do tipo de crime) de feminicídio em 2016. Ou seja, um número cinco vezes maior do que o apresentado pelas entidades estaduais de segurança pública. A base para o relatório veio dos Ministérios Públicos em cada Estado, que têm informações sobre investigações mais completas.
“A gente está falando de um crime cujos vestígios desaparecem muito rápido, que muitas vezes tem crianças como testemunhas, o que traz dificuldade no depoimento porque as crianças podem esquecer mais facilmente. É uma corrida contra o tempo”, diz a promotora de Justiça Silvia Chakian, do Gevid (grupo de atuação especial de enfrentamento à violência doméstica), do Ministério Público de São Paulo.

“Quanto mais robusto o inquérito, melhor a denúncia”

Para a socióloga Wânia Pasinato, da USP (Universidade de São Paulo), estar de acordo com a lei depende de observar o crime, desde o primeiro contato, sob a perspectiva do gênero e se perguntar: “Sendo a vítima uma mulher, o que esse assassinato tem de diferente?”.
“Não faz diferença o sexo do policial que está investigando ou do promotor ou do juiz que está julgando o caso. É uma questão da formação, da forma como olham para o crime e como conduzem a investigação”, afirma.
“Pode haver modificação [na tipificação do crime] nesse processo de investigação”, explica Neme. “Se em um boletim de ocorrência, inicialmente, não houve a percepção pelas autoridades policiais de que se tratava de um feminicídio, a informação deve ser complementada durante o inquérito policial”, ela diz.
A promotora Silvia Chakian dá exemplos de elementos que, “de cara”, são indicadores de crime de feminicídio:

  • suspeito de autoria é conhecido da vítima: parente, parceiro ou ex-parceiro;
  • a morte ocorreu dentro do espaço doméstico;
  • a morte é acompanhada de violência sexual;
  • vítima tem sinais no corpo de mutilação, de atentados contra seus órgãos genitais e contra elementos do feminino: rosto e seios;
  • a violência se manifestou de forma extrema, com golpes repetitivos.

“A opinião do Ministério Público é que, quando esses elementos são detectados de cara, o ideal é que esse caso já comece a ser investigado partindo-se do pressuposto de que pode ser um feminicídio”, afirma Chakian. “Essa é uma análise que a autoridade policial tem que fazer. Quanto mais robusto esse inquérito policial chega, mais ele subsidia a atuação correta do promotor de Justiça, que vai oferecer a denúncia.”

“Dados são importantes para diagnosticar a violência contra a mulher”

Pelas leis do país, um homicídio simples pode ser punido com prisão de seis a 20 anos de prisão. Desde 2015, porém, se o motivo do homicídio é subjugar a vítima porque ela é mulher, o crime passa a ser um “homicídio qualificado”, com o nome de “feminicídio”: quando envolve violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
A pena aumenta para 12 a 30 anos de cadeia no feminicídio porque o crime passa a ser considerado “hediondo” (ou repugnante). E a punição pode ser aumentada se a vítima estiver grávida ou acabado de ter um bebê; se for menor de 14 anos, maior de 60 anos ou com deficiência; ou se o crime tiver ocorrido na presença de um descendente ou ascendente –por exemplo, filhos ou pais da vítima.
Mesmo que o criminoso, ao fim do processo, seja condenado de forma adequada, o registro de feminicídio se perde, segundo a socióloga Neme, porque os dados sobre esse tipo de crime não são corretamente atualizados pelos órgãos de segurança. E isso prejudica ações para reduzir e evitar mortes de mulheres por motivação de gênero.
“Ter os dados completos é importante para conhecer este fenômeno social. Com um dado mais consistente, você consegue diagnosticar melhor quais são as situações de violência contra a mulher, onde ela acontece, que perfil ela atinge, quais mulheres estão morrendo mais. E é possível fazer isso”, ela sugere.

Estado com pior taxa tem qualificação “exemplar” de dados

No ranking organizado no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, os Estados com as maiores taxas de feminicídio são Piauí, Santa Catarina, Alagoas, Distrito Federal e Mato Grosso do Sul.

“O Estado do Piauí apresentou 57%, a taxa mais alta de feminicídio, que é a mais próxima da realidade brasileira, porque tem um trabalho qualificado de investigação, com um olhar bastante atento para a perspectiva de gênero”, diz a pesquisadora Neme.
“Não é a primeira informação do BO que foi colocada ali, é uma estatística qualificada. Não podemos dizer o mesmo de outros Estados em que esse percentual é muito baixo. Provavelmente, nesses outros casos, é o dado primário, bruto que vem do BO.”
Na outra ponta, são estes os Estados com as menores taxas de feminicídio: Rio de Janeiro, Bahia, Roraima, Paraíba e Goiás.
Dez Estados não apresentaram informações sobre feminicídios ao Anuário: Mato Grosso, Minas Gerais, Acre, Maranhão, Sergipe, Amapá, Rondônia, Tocantins, Ceará e Amazonas.
“O enquadramento penal de feminicídio e a primeira estatística de feminicídio deveriam ser lançadas não pela polícia, mas pelo Ministério Público”, sugere Pasinato, da USP. “Porque a polícia pode até fazer a correção do dado, mas há um tempo de investigação, que pode durar dois dias, se tem um flagrante, ou dois anos, se a autoria é desconhecida.
Metade dos assassinos são parentes e 33% são parceiros
O Mapa da Violência, um estudo elaborado pela Flacso (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) com apoio da ONU (Organização das Nações Unidas), é uma das referências para os pesquisadores de violência por motivação de gênero no Brasil. Em 2015, o tema da pesquisa foi o homicídio de mulheres no Brasil.
Segundo o estudo, 50,3% das mortes violentas de mulheres são cometidas por parentes e 33,2% por parceiros ou ex-parceiros. Foram usados dados de 2013 do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde.
Em um grupo de 83 países pesquisados pela ONU, o Brasil apresentava a quinta maior taxa de homicídios de mulheres: 4,8 casos por 100 mil mulheres.
“É um equívoco acreditar que autores de violência de gênero são monstros ou psicopatas ou doentes”, defende a promotora Chakian. “A porcentagem de psicopatia nesses casos é muito pequena. As raízes dessa violência são relacionadas a aspectos da nossa cultura patriarcal, machista e misógina.”
Outro lado
Rondônia, Amapá e Acre não responderam ao pedido de informações da reportagem sobre o número de feminicídios registrados nestes Estados e por que os dados não foram enviados ao fórum. Foram feitas várias tentativas de obter as respostas, no período de uma semana.
Os outros sete Estados afirmaram ao UOL que esses números ainda não estavam disponíveis quando foi realizada a pesquisa e, portanto, não foram repassados.
O Maranhão informou que entrou em operação em março de 2017 o Departamento de Feminicídio, quando foi iniciada a consolidação dos registros por esse tipo de crime, sendo que os dados referentes aos anos de 2015 e 2016 ainda estão sendo contabilizados. Em 2017, o Estado registrou, até o momento, 42 feminicídios.
Minas Gerais incluiu este ano, pela primeira vez, casos de feminicídios no seu diagnóstico de mortes violentas de mulheres: foram registradas 397 ocorrências em 2016.
Em Sergipe, segundo a assessoria, o tipo penal do crime não havia sido inserido no boletim de ocorrência online, sendo contabilizado como homicídio doloso (quando há intenção). Já para 2017, está sendo feita uma avaliação de cada inquérito que tem como motivação da investigação homicídios dolosos tendo mulheres como vítimas, e o próximo repasse ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública terá o tipo penal “feminicídio” com as devidas especificações.
No Amazonas, no ano de 2016, foram registrados 12 casos de feminicídio, e de janeiro até setembro de 2017, são 14 ocorrências.
Tocantins e Ceará responderam que ainda não contabilizam casos de feminicídio, mesma situação em Mato Grosso, onde apenas uma delegacia registra boletins de ocorrência com essa tipificação: foram sete casos em 2017.
Estados que não contabilizam ocorrências de feminicídio não estão em desacordo com a lei, mas esse é o recomendado para que a prevenção e a redução das mortes violentas de mulheres sejam eficazes.