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Da série “Raízes da intolerância“, do NE10

Quem mandou nascer mulher?

misoginiaA misoginia tem tantas faces que você, mulher, que está lendo esse texto, pode até ter sido vítima dela antes de chegar em casa – ou pode estar sendo caso esteja num vagão apertado de metrô ou espremida num ônibus num horário de pico. E o pior: não achou que foi agredida porque ‘isso acontece todo dia’. As violências contra o sexo feminino não se resumem a socos, tapas, empurrões e estupros. Te chamar de gostosa, assobiar e outras expressões perpetuadas como ‘elogio’ são a mais pura tradução do machismo, responsável pela maior parte dos crimes cometidos contra o dito sexo frágil.

O desrespeito à condição de mulher chegou ao ponto de o arcabouço jurídico brasileiro ganhar leis que as protegessem. Ainda que tardiamente, o século 21 criou, até o momento, três mecanismos para tentar não só punir agressores, mas principalmente, frear a escalada da violência. A primeira iniciativa foi a Lei Maria da Penha, de 2006, que criminalizou a violência doméstica. Três anos depois (2009), a Lei 12.015 alterou o Título VI do Código Penal, trecho que trata dos crimes contra a dignidade sexual.

O acréscimo de “ato libidinoso” inclui até os famosos beijos forçados do Carnaval e protege mulheres casadas que sejam obrigadas a ter relações sexuais com seus maridos contra a vontade. A mais recente é a Lei 13.104/2015, que tornou o feminicídio crime hediondo.

Falamos em atraso porque a discussão sobre igualdade de gênero começou na segunda metade do século 20. “Depois da segunda guerra os movimentos sociais se organizaram e as mulheres começaram a entender que seus corpos não pertenciam aos seus homens mas a elas. Mas desde que o mundo é mundo temos informações sobre violência nas relações entre homens e mulheres”, diz a Secretária executiva de Políticas para as Mulheres do Recife, Ceça Costa.

A socióloga Rosário Leitão, da Universidade Federal Rural de Pernambuco, vê a construção desse discurso do masculino superior ao feminino – e a violência que veio em sequência – como resultado de um discurso patriarcal em que à mulher foi imputada uma imagem de fragilidade. E, como supostamente frágil, não teria condições físicas nem psicológicas de prover a família. Restava-lhe um canto da casa. “Nestas funções se destacam a maternidade, a realização das atividades domésticas, o mundo privado, o que facilitava a dependência e a submissão. O mundo limitado das mulheres em gerações passadas possibilitou a elaboração de um discurso negativo sobre as mulheres.”

No Brasil, como as legislações acima sugerem, houve um atraso imposto pela ditadura militar (1964-1984), quando muitos direitos, principalmente de se expressar – não só das mulheres, como de todos – foram suspensos. “A partir da redemocratização, nos anos 80, as mulheres voltam mais intelectualizadas e com mecanismos para responder. Por isso eu diria que hoje temos mais acesso à informação. Porque a violência sempre houve. Antigamente não se entendia que obrigar a fazer sexo no casamento, por exemplo, era violência. Assim como o homem não permitir que a mulher estudasse. “

A culpa é de Eva

Para Ceça Costa, também há uma raiz religiosa muito forte para esse ‘rebaixamento’ histórico do sexo feminino. Ela cita como exemplo o Gênesis, primeiro livro da bíblia. “Diz que a mulher é a pecadora. O pecado original é Eva comendo o fruto do conhecimento e depois Adão cai. Na idade média, as mulheres é que eram queimadas como bruxas. Essa ideia também foi encampada pelo islamismo de forma ainda mais radical, haja vista não só o veto a exposições de partes dos corpos femininos. No capítulo 4 do Corão, o livro sagrado dos muçulmanos encontramos: “Os homens têm autoridade sobre as mulheres porque Alá fez um superior à outra”.

São escritos antigos, pensados em um contexto sócio-cultural completamente diferente. Será? Vamos abandoná-los e dar uma olhada em textos mais modernos. O socialismo idealizado por Karl Marx aborda a coisificação da mulher. Mas a interpreta sob a ótica do capitalismo, que, ao exaltar a propriedade privada, colocou a dona de casa também uma lista de objetos pertencentes ao ‘patrão’.

“Quando os autores marxistas criticam o crescimento da propriedade privada, a mulher, por estar dentro de casa entra na lista dessas ‘propriedades’ e se torna algo ‘coisificado’, pertencente aos seus senhores”, explica a psicóloga.

Como mudar?

Dizer que existe uma fórmula pronta para acabar com o machismo é exagero, mas uma boa pedida seria cuidar desde a infância. A primeira é não naturalizar os papéis historicamente atribuídos a um e a outro. A começar pela cor das roupas, brinquedos, objetos escolares. “Faz-se necessário compreender e questionar a naturalização dos papéis sociais, que se inicia com a cor atribuída a meninos e meninas, os brinquedos, os acessos, a liberdade etc. Romper estereótipos e educar para a cooperação e não para a competição”, diz Rosário.

Quem sabe, a partir daí, não seja mais necessário confinar mulheres num vagão exclusivo de metrô, orientar para que só bebam até certo ponto, não saiam sozinhas, não usem roupas curtas. Mas que como os homens, possam vestir o que quiserem, beberem até quando se sentirem satisfeitas e saírem a qualquer hora sem serem importunadas ou julgadas.

Por que ela simplesmente não
vai embora?

O que pretendemos discorrer aqui é como as agressões contra o sexo feminino são perpetuadas de tal forma que faz algumas mulheres repetirem o ciclo com mais de um agressor. “Tem mulher que provoca”. Essa frase não saiu da boca de nenhum marido/namorado/companheiro violento, mas sim de uma das vítimas depois de três relacionamentos sucessivos recheados de agressões.

Antes que alguém atire a primeira pedra: nenhuma delas gosta ou algum dia gostou de apanhar. Mas a violência é tamanha e tão entranhada que as leva a concluir da forma que aparece no parágrafo aí em cima. A psicóloga Dayse Guedes atende mulheres vítimas de agressões domésticas no Centro de Referência Clarice Lispector e nos lembra que esse conformismo passa por dois pontos.

Baixa autoestima

São multifatores que fazem uma mulher não sair do ciclo de violência, mas sem dúvida, a autoestima baixa é uma delas. Uma pessoa com esse perfil tem medo de criar os filhos sozinha, acha que não vai dar conta da casa e procura, inconscientemente, um homem com perfil dominador. E o dominador é, quase sempre, machista. Ele vai relegar a mulher a um canto da casa, não vai permiti-la sair daquele ‘cercado’. E se ela tenta, a reação é violenta, física ou psicológica ou as duas juntas. E o ciclo recomeça.

“Elas têm a autoestima muito baixa para não conseguir cortar esse ciclo. Não acreditam que podem ir à luta, trabalhar, viver sozinhas. Por isso idealizam que, mesmo sofrendo, tem alguém que dá apoio a ela. “

Histórico familiar

Esse ponto vale para agressor e vítima. O menino que vê o pai batendo na mãe pode crescer acreditando que aquele tipo de relação é ‘normal’. A irmã dele que presencia a mesma cena tende, também, a aceitar que o homem tem o direito de espancar a mulher apenas por um pertencer a um gênero e a outra pessoa a outro.

“As histórias familiares se repetem muito. Mesmo com a mulher tendo visto a mãe sofrer, inconscientemente busca alguma coisa dessa história. Não fazem isso conscientemente e é muito comum encontrar gente no atendimento com esse perfil. O inconsciente dela vai buscar isso porque só passaram por aquela situação e acham que é a única forma de se relacionar”.

Mas é óbvio que isso não é regra. Há quem entre no supracitado ciclo apanha/perdoa/apanha/vai à delegacia/perdoa e apanha de novo até certo ponto. E desse ponto não há mais retorno. É o caso de Maria Rita da Cruz, que serve de exemplo também por usar sua experiência para ajudar outras mulheres. Quando finalmente conseguiu se livrar do terror, após longos 14 anos, cortou não só vínculo com o ex-marido violento mas também com todos os significados que ele trazia. Quando surgiu a oportunidade de retomar a vida a dois com outra pessoa não pensou duas vezes em cortar o mal pela raiz antes mesmo que essa raiz virasse árvore e desse frutos.

Ela nos conta que em nenhum momento abriu mão de ser feliz acompanhada. Mas agora tem regras. E não há amor que burle tais determinações. “Não quero ignorância comigo, não quero mais ser maltratada. Se não der certo vai embora”. E isso aconteceu há bem pouco tempo. “Na primeira vez que ele veio com ignorância arrumei as coisas dele e mandei de volta para a casa da mãe”

A lei existe

O problema é que não é aplicada

Os números nacionais não são atualizados desde 2013, mas a curva ascendente dos homicídios de mulheres no Brasil desde 2007 torna difícil visualizar uma redução. Até porque o endurecimento da legislação é recente. Para quem não sabe, a Lei 13.104, que tornou o feminicídio crime hediondo, ainda não completou dois anos. A reportagem solicitou, via Lei de Acesso à Informação, a quantidade de pessoas cumprindo pena em regime fechado tanto pela lei citada acima como pela Maria da Penha. O Departamento Penitenciário Nacional admitiu não ter essa estatística.

“Forçoso convir que os referidos dados estatísticos consolidados por este Departamento não abarcam plenamente a pesquisa demandada, pois não há a estratificação do crime supracitado em nossos formulários e relatórios”, diz a resposta do Departamento Penitenciário Nacional, órgão vinculado ao Ministério da Justiça.

Por isso, os dados disponíveis são do Mapa da Violência 2015 – Homicídio de Mulheres, que colheu os dados entre os anos de 1980 e 2013. Esse estudo, além de indicar uma perpetuação da violência, mostra que os efeitos da lei não tendem a durar muito. Tomemos como exemplo a decenal Maria da Penha. Pelo Mapa, tanto o número absoluto quanto a taxa de homicídios femininos caíram apenas no ano seguinte à legislação entrar em vigor. A partir de 2008, retomou-se a rota ascendente, num ritmo menor àquele observado antes do advento da legislação, é verdade. Mas ainda distante do zero.

Para o organizador do Mapa da Violência – Homicídio de Mulheres, Júlio Jacobo Waiselfisz, o problema no Brasil não é de leis, mas em como elas são implementadas. Ele, inclusive, aponta a legislação nacional, ao menos no que diz respeito a proteger a mulher, como avançada.

“Os homicídios de mulheres só caíram significativamente no primeiro ano de vigência da Lei Maria da Penha, de 2006 para 2007, depois os números cresceram e, em alguns períodos, de forma significativa. O problema não está na lei. As leis do Brasil são consideradas avançadas (Maria da Penha, Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto do Idoso). O grande problema é a sua implementação, que ainda hoje, mais de dez anos depois de sua promulgação, ainda está engatinhando e calculo que, hoje, com as limitações financeiras, também não vai avançar”, aponta.

Na lista mundial do feminicídio, o Brasil ocupa um nada honroso quinto lugar, com sua taxa de 4,8 mulheres mortas para cada grupo de 100 mil no último ano de coleta de dados. Para Jacobo, dois fatores somam-se negativamente para esse índice: o social e o econômico. “Se mata muita mulher, mas mulher negra e pobre”.

E, obviamente, a forte raiz machista, que não consegue enxergar a mulher como um igual. “A causa é fundamentalmente socioeconômica. Mas também atua entre os homens uma reação conservadora às atuais mudanças nas relações familiares. Existem determinados papéis configurados na visão patriarcalista: o papel da esposa, o papel da mãe, o papel subordinado da mulher. Qualquer transgressão a eles pode e deve ser punido. E a atual corrente de liberação e igualização feminina é vista como uma profunda ameaça ao status quo”.

Materializando as afirmações de Jacobo, nos dez anos compilados até a última pesquisa – 2003 a 2013 – o homicídio de mulheres brancas caiu 9,8%. Com as negras foi completamente o contrário: aumento de 54,2%. Depois da Lei Maria da Penha, o assassinato de brancas continuou a cair, agora 2,1%. Das negras manteve-se em ascensão, porém num ritmo menos acelerado, 35%.

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