A Promotoria do Patrimônio Público e Social de São Paulo instaurou inquérito sobre a seleção para contratação de um professor da USP (Universidade de São Paulo) em dezembro de 2008 e sobre aprovação de sua tese de doutorado em abril do mesmo ano. Dois examinadores nas duas avaliações eram parceiros do candidato em projetos financiados e se tornaram sócios dele um mês após sua contratação.
Em 21 de outubro, o promotor de Justiça Silvio Marques deu prazo de dez dias para a USP informar se tomou providências sobre as duas bancas examinadoras da Escola Politécnica. O prazo para resposta começa a contar da data de recebimento do ofício da promotoria pela reitoria, que não deu informações sobre o assunto.
Apesar de ter sido comunicada oficialmente em fevereiro sobre o assunto pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), somente após o questionamento do Ministério Público, a reitoria da USP tomou providências. Sua procuradoria geral recomendou a abertura de sindicância investigativa à Escola Politécnica que, segundo a assessoria de imprensa da universidade, vai apurar o caso.
Há dez meses, a Unicamp comunicou a USP ao mesmo tempo que decidiu instaurar processo administrativo disciplinar sobre a atuação, em bancas de pós-graduação, de dois de seus professores da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo. Os docentes são os mesmos que participaram do exame de doutorado e da seleção para contratação na Poli, investigadas pela promotoria em São Paulo.
Estabelecido em 2001, o Código de Ética da USP determina às autoridades da universidade a obrigação de promover a apuração de atos de improbidade e de ilícitos administrativos e instituiu a seguinte proibição.
“Nenhum servidor docente ou não-docente deve participar de decisões que envolvam a seleção, contratação, promoção ou rescisão de contrato, pela Universidade, de membro de sua família ou de pessoa com quem tenha relações que comprometam julgamento isento.”
Essa restrição e outros princípios do Código de Ética se aplicam também, como estabelece seu artigo 19, para membros de comissões examinadoras externos à universidade.
Sócios em empresa
Em janeiro de 2009, um mês após participarem como examinadores na contratação pela Poli, os engenheiros Alberto Carlos Francato e Paulo Sergio Franco Barbosa, da Unicamp, professores da Unicamp, tornaram-se sócios da Hidrasoft Engenharia e Informática Ltda., fundada em 2001 pelo candidato selecionado por eles, Renato Carlos Zambon, cuja tese de doutorado também aprovaram em abril de 2008.
A Hidrasoft foi encerrada em setembro de 2015, após denúncias, entre elas a de ter sido recebido cerca de R$ 780 mil que deveriam ter sido pagos à Unicamp pela concessionária de energia AES Tietê S/A. Os recursos para o projeto foram obtidos com base na lei de incentivo à pesquisa e desenvolvimento no setor elétrico.
Outro inquérito
Os três docentes foram também questionados pelo promotor de Justiça Silvio Marques, que instaurou o inquérito ao ser informado pela Promotoria do Patrimônio Público de Campinas, que em maio desta ano já havia aberto processo sobre bancas de pós-graduação na Unicamp com a participação de Barbosa e Francato.
A promotora de Justiça Cristiane Hillal questionou os dois docentes da Unicamp e também a reitoria, que já informou ter instaurado processo disciplinar. Por meio de advogados, os dois professores encaminharam à promotoria de Campinas documentos de sua associação à empresa fundada por Zambon posteriormente às bancas examinadoras de seu doutorado e de sua seleção para contratação.
Enviadas à promotoria de Campinas no final de setembro e semelhantes em praticamente todo o seu conteúdo, as respostas dos advogados de Barbosa e Francato alegam que “não houve afronta a princípios e, tampouco, dano ao erário passíveis de responsabilização”, por parte dos dois docentes, e propõem o arquivamento do inquérito.
Currículo alterado
Em 11 de outubro, alguns dias após as respostas de seus ex-sócios à promotora, Zambon alterou seu currículo na plataforma Lattes, do governo federal, que é padronizada para todo o Brasil.
O professor da Poli removeu referências a três projetos de pesquisa com a participação dos seus dois colegas da Unicamp, iniciados entre 2003 e 2005, antes do doutorado e de sua contratação. No seu Lattes, Barbosa não mostra nenhum trabalho anterior a 2009, quando se tornou sócio da Hidrasoft. Dos três projetos removidos por Zambon, Francato menciona apenas um, do qual foi coordenador.
Zambon manteve em seu currículo a referência a outro projeto de pesquisa em parceria com Barbosa e Francato, identificado pela “Patrich” (Proteção Associada ao Tempo de Retorno Implícito de Cheias). Apesar de ter sido realizado de 2009 a 2010, o projeto foi proposto em 2006 para a Cesp (Companhia Energética de São Paulo), dois anos antes do doutorado e da seleção.
Apesar de indicados por Zambom como seus parceiros no projeto Patrich, Barbosa e Francato não indicam esse trabalho em seus currículos entre seus trabalhos de pesquisa. Eles o mencionam apenas como uma metodologia em artigos em coautoria com o ex-sócio e colega da USP.
Embora tenha sido proposto à Cesp com a indicação da Unicamp como instituição executora, o projeto Patrich foi remunerado apenas à empresa Hidrasoft, já com Barbosa e Francato entre os sócios de Zambon. O valor pago foi de R$ 229,8 mil, segundo a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), em resposta em 31 de outubro a uma procuradora da Unicamp que recorreu à Lei de Acesso à Informação.
Assim como a promotora de Campinas, seu colega de São Paulo também questionou Barbosa e Francato, dando para ambos e inclusive para Zambon o prazo de dez dias para prestarem esclarecimentos. Por meio da assessoria de imprensa do Ministério Público do Estado de São Paulo, Marques informou que só comentará o caso após receber e analisar as respostas solicitadas.
O que disseram e dizem a USP e a Poli
A reitoria da USP, que há três meses nada respondeu, nem se teria tomado alguma medida após ter sido oficialmente comunicada sobre o assunto pela Unicamp, informou agora apenas a sindicância recomendada por sua procuradoria jurídica à Escola Politécnica, que a faculdade vai realizá-la e acrescentou: “Recebemos a notificação do Ministério Público em 27/10/16 e a USP prestará os esclarecimentos”.
Quando foi questionado em agosto pelo blog “Direto da Ciência”, o diretor da Poli, José Roberto Castilho Piqueira, respondeu que a formação da banca julgadora da tese de doutorado de Zambon “seguiu estritamente o Regimento da Pós-Graduação” da USP.
Piqueira disse também naquele momento que a banca examinadora foi composta por cinco doutores, com mais de dois deles externos à instituição, acrescentando que não havia qualquer relação de parentesco entre o examinado e os membros da comissão.
Ainda em agosto, o diretor da Escola Politécnica, que agora, segundo a reitoria, deverá apurar se há responsabilidades a serem determinadas, afirmou também sobre o doutorado: “As normas do Regimento da USP foram obedecidas na formação da banca e na sua atuação durante os trabalhos da defesa. Não houve relato de fato que justificasse a tomada de alguma providência”.
Sem respostas
O professor Renato Carlos Zambom, do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Escola Politécnica da USP, não respondeu à pergunta sobre por que ele alterou seu currículo, removendo exatamente referências a projetos de pesquisas anteriores à defesa de sua tese de doutorado e à sua seleção para contratação e em parceria com seus ex-sócios.
Da mesma forma que Zambom, os professores Alberto Carlos Francato e Paulo Sergio Franco Barbosa, da Faculdade de Engenharia Cicil, Arquitetura e Urbanismo da Unicamp, não responderam até o fechamento desta reportagem às perguntas encaminhadas a eles na terça-feira (8).
Os três docentes não responderam também por que, em agosto, mesmo tendo sido questionados por terem sido sócios da Hidrasoft Engenharia e Informática Ltda., não afirmaram que os dois docentes da Unicamp se associaram à empresa um mês após a seleção para contratação do fundador da empresa, realizada de 1 a 4 de dezembro de 2008.
Também procurada desde terça-feira, a direção da Escola Politécnica não comentou o caso.
* Maurício Tuffani é editor do blog Direto da Ciência.
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