Por André Lázaro e Luciano Cerqueira para o Portal Geledes
A Fundação Carlos Chagas (FCC) e a Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (Flacso Brasil), com apoio da Fundação Ford, se associaram para realizar uma pesquisa sobre os movimentos sociais e suas articulações em torno do tema educação. Um dos objetivos da pesquisa “Movimentos em movimento: quem somos e onde estamos?” é conhecer e apoiar a mobilização em defesa das políticas de ação afirmativa na educação superior. A pesquisa é dirigida a organizações, movimentos sociais, coletivos e outros grupos, em particular do movimento negro, que incluem a educação em sua agenda de atuação.
Os movimentos sociais têm sido atores decisivos para o avanço das agendas democráticas em nosso país. A constituição de 1988 traz em muitos de seus artigos as marcas da luta social e conquistas posteriores devem-se à permanência desse empenho e à renovação das forças em atuação. Bons exemplos podem ser encontrados nas políticas de educação. A inclusão de creches no financiamento público, a participação da educação de jovens e adultos nos direitos da educação básica à alimentação, ao transporte, aos livros didáticos e financiamento público pelo FUNDEB são alguns exemplos dessas conquistas. Para o movimento negro em particular, a aprovação da lei 10.639/2003 e sua regulamentação pelo Conselho Nacional de Educação em 2004 são marcos legais decisivos para o combate ao racismo em nossa sociedade. Hoje as conquistas mais visíveis são a lei de cotas (12.711/2012) para ingresso nas instituições federais de educação e a lei que determina a reserva vagas em concursos públicos (12.990/2014).
A educação superior no Brasil teve grande expansão ao longo do século XXI segundo dados do INEP. No período de 2000 a 2014, as matrículas do setor privado cresceram 224%, enquanto no setor público o crescimento foi de 104%. A expansão do setor privado foi fortemente estimulada pelas políticas públicas como o PROUNI, com bolsas integrais e parciais mediante renúncia de impostos federais, e o crédito a juros baixos oferecido pelo FIES. No setor público, a expansão das redes federais de educação superior e de educação profissional e tecnológica ampliou a presença dessas instituições em todos os estados da federação. As ações afirmativas estão presentes em políticas para o setor privado, como no caso do PROUNI, e no setor público federal.
As cotas – no PROUNI e nas Instituições Federais – são um dos principais mecanismos de ampliação do acesso à educação superior para jovens de baixa renda e para jovens negros e negras e têm contribuído para dar maior visibilidade à luta contra o racismo e pela igualdade de direitos. Em 2016 todas as instituições federais cumpriram o estabelecido pela legislação com a reserva de 50% das vagas, em todos os cursos e turnos, para estudantes de escolas públicas, com cotas para pretos, pardos e indígenas na proporção desses grupos em cada unidade da federação. Algumas instituições foram além do mínimo, ampliando a presença de estudantes da rede pública ou criando iniciativas específicas para povos indígenas e quilombolas.
Apesar de o acesso de negros e negras à universidade ter crescido na última década, a proporção dos estudantes de 18 a 24 anos pretos ou pardos que frequentam o ensino superior ainda é baixa. Em 2004, apenas 5,6% de jovens não brancos (negros e indígenas) nesta faixa etária estavam frequentando cursos de graduação, enquanto para a população branca e amarela essa proporção alcançava 19,3% dos jovens. Em 2014, os números eram de 12,9% para negros e indígenas e 29,4% para os demais. Duas observações: mesmo com a adoção de políticas afirmativas ao longo do período analisado, a proporção de estudantes negros e indígenas em 2014 é inferior a de jovens brancos e amarelos em 2004. Em segundo lugar, a distância entre os dois grupos, que era de 13,7 pontos percentuais em 2004, sobe para 16,5 pontos no final do período.
O desafio do ingresso é o primeiro de uma série: tanto no setor privado como no setor público são necessárias políticas de permanência que garantam as condições para que os estudantes possam se dedicar a sua formação. São condições materiais, acadêmicas e também subjetivas, ou seja, de reconhecimento pela instituição – seus docentes, técnicos e discentes – do legítimo direito desses grupos de freqüentar as instituições. A Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (Flacso Brasil) desde 2011 realiza o projeto Grupo Estratégico de Análise da Educação Superior no Brasil (GEA-ES) que se dedica ao tema das políticas de ação afirmativa em educação, com apoio da Fundação Ford e em parceria com o Laboratório de Políticas Públicas da UERJ. O projeto conta com publicações (disponíveis em www.flacso.org.br/gea), criou um centro de documentação, produz um clipping diário sobre educação e tem organizado em alguns estados da federação Fóruns de Ação Afirmativa, em que reúne gestores de instituições públicas e de redes públicas de ensino médio, pesquisadores, estudantes e representantes de movimentos sociais, coletivos e associações.
Os Fóruns têm revelado que há pouca articulação entre as instituições federais de educação e as redes públicas de ensino médio, de forma que os jovens dessas redes não estão devidamente informados sobre os direitos adquiridos com a nova legislação. Revelaram também que as políticas de permanência são pouco conhecidas e menos ainda debatidas e avaliadas pelos estudantes: nem sempre as regras são claras e públicas. Os estudantes relatam casos de racismo – entre docentes, técnicos e estudantes – e são poucas as iniciativas institucionais, claras e firmes, para combater as diversas formas de discriminação. E estudantes indígenas, negros e negras apontam o silêncio e a ignorância da academia quanto às distintas epistemologias, cosmologias e saberes de seus ancestrais e intelectuais contemporâneos: uma academia eurocêntrica que demonstra pouco interesse em se aproximar de outras visões de mundo.
Um ponto tem chamado a atenção nos encontros: a presença de coletivos estudantis autônomos, de gestão horizontal, não filiados a partidos ou correntes políticas institucionalizadas, com forte atuação na denúncia e no enfrentamento daquelas manifestações de racismo e discriminação. No entanto, também se pode observar certa distância entre as gerações anteriores dos movimentos sociais, em particular do movimento negro, e o ativismo das novas gerações, articuladas nos coletivos de atuação política local e, aparentemente, com menor contato com organizações e movimentos que na década anterior se empenharam nas conquistas.
A participação do movimento social é fundamental para que a política de reserva de vagas não se resuma e esgote no processo seletivo. Em julho de 2014, o MEC e a SEPPIR constituíram, por meio da portaria interministerial n.7, a Comissão Consultiva da sociedade civil, encarregada de “elaborar propostas de ações que promovam a concretização efetiva da reserva de vagas” prevista na lei 12.711/2012. A Comissão reuniu-se naquele ano e em 2015, elaborou proposta para o acompanhamento da lei de cotas na graduação, entre outras sugestões, mas suas recomendações não foram respondidas pelo Ministério da Educação.
Por outro lado, as políticas afirmativas para acesso à pós-graduação enfrentam resistências mais intensas e persistentes. O trabalho da Fundação Carlos Chagas (FCC), com apoio da Fundação Ford, tem sido uma referência para o desenvolvimento de estratégias de promoção de equidade na pós-graduação. As formas de seleção e preparação de candidatos e candidatas a cursos de mestrado e doutorado tanto de estudantes negros e negras como de indígenas alcançou resultados notáveis. Seu pioneirismo inspirou o Programa Abdias Nascimento, criado pelo MEC em 2013, fruto de parceria entre a CAPES e a SECADI. Embora os projetos tenham sido selecionados, até o momento não há notícias de quando e como o programa será de fato implantado. De todo modo, a expertise da Fundação Carlos Chagas continua orientando os programas de pós-graduação que decidem implantar políticas de ação afirmativa, estimulados agora pela portaria normativa 13 do MEC, segundo a qual as Instituições Federais de educação Superior têm o prazo de 90 (noventa) dias para apresentar propostas para a inclusão de “negros (pretos e pardos), indígenas e pessoas com deficiência em seus programas de pós-graduação (Mestrado, Mestrado Profissional e Doutorado), como Políticas de Ações Afirmativas”. A portaria é de 11 de maio de 2016, véspera do afastamento da Presidenta Dilma pelo Senado. Ficará para sempre a dúvida: por que demorou tanto a ser editada, já que o tema estava na agenda desde o final da década passada? E uma pergunta: quem cobrará das Instituições a entrega das propostas a partir de 11 de agosto?
Os impasses – tanto no acompanhamento da lei de cotas na graduação como para sua adoção na pós – demonstram a necessidade de os movimentos sociais, organizações e coletivos atuarem no sentido de garantir direitos conquistados e avançar na agenda que, há mais de uma década, enfrenta resistências para que se amplie a participação das populações excluídas aos mais elevados níveis de formação educacional. Hoje o doutorado é condição inicial para o ingresso na carreira docente. Sem essa formação não será possível avançar também na presença de professores e professoras negras nas instituições de educação superior.
Daí a relevância política da pesquisa para favorecer a articulação de movimentos, organizações e coletivos em torno de agendas comuns. A pesquisa tem por objetivo elaborar um catálogo que será acessível publicamente para favorecer a criação de redes e articulações entre distintos grupos. A pesquisa terá um desdobramento imediato na realização de uma oficina de trabalho com entidades participantes para o estudo de indicadores educacionais e sociais que possa subsidiar a avaliação e o acompanhamento do direito à educação pelas entidades e grupos.
Os principais objetivos da pesquisa:
Identificar grupos (organizações, movimentos e coletivos) em particular os de juventude e do movimento negro, em atuação no país;
Conhecer as novas formas de mobilização, organização e atuação dos movimentos sociais;
Verificar os temas de interesse, formas de atuação e como a educação participa da agenda desses grupos;
Contribuir na construção, formação e fortalecimento de redes locais, regionais e nacional em torno da agenda das AA.
A pesquisa consiste num questionário que busca identificar o tipo de organização, os temas prioritários, as formas de mobilização e a participação em instâncias de políticas públicas e redes da sociedade civil. O primeiro passo da pesquisa já foi dado, com a formulação do questionário, submetido a um pré-teste, e a preparação da listagem inicial com mais de 500 organizações e coletivos. Participam dessa etapa 4 pesquisadores (2 negros e 2 brancos, 2 homens e 2 mulheres, com diferentes níveis de formação: doutor, doutorando, mestra e graduada).
Convidamos as organizações, instituições, movimentos e coletivos a entrarem em contato conosco (pesquisaflacsofcc.2016@gmail.com) para que seja enviado o link do questionário, que ocupa menos de 10 minutos para seu preenchimento. A pesquisa se estende do mês de julho a final de outubro. Portanto se seu movimento, coletivo, ou organização receber o nosso e-mail, por favor, colabore. Estamos trabalhando para criar uma rede de contatos que visa o fortalecimento da luta da juventude (especialmente negra) por direitos.
1 Professor associado da UERJ, pesquisador da Flacso Brasil e diretor da Fundação Santillana. Coordenao projeto Grupo Estratégico de Análise da Educação Superior (GES-ES).
2 Pesquisador do Grupo Estratégico de Análise da Educação Superior (GEA-ES) da Flacso Brasil e Doutorando do Programa de Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da UERJ.
3 Foram realizados mais de 10 Fóruns no país. Maiores informações sobre o trabalho do GEA-ES podem ser encontradas no site da Flacso Brasil.
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