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Não há tragédia maior no Brasil do que a epidemia homicida de crianças e adolescentes
Por Flávia Oliveira, em O Globo

Foto: Andressa Anholete/Flacso Brasil

Foto: Andressa Anholete/Flacso Brasil


De pesar e indignação deveria ser o cotidiano de uma sociedade que, num solitário ano, perdeu 10.520 crianças e adolescentes assassinados. O número assombroso está na última edição do Mapa da Violência, inteiramente dedicada à violência letal contra os brasileiros de zero a 19 anos. São 28 homicídios infanto-juvenis por dia em território nacional. Há histórias para lotar páginas e páginas de jornais e revistas, telas e telas de sites e blogs, horas e horas de programação da TV. Mas não lotam. Por banalizadas, as dezenas de óbitos diários não sensibilizam o Brasil.
A publicação de 152 páginas que se debruçou sobre as causas de morte dos meninos brasileiros trouxe uma boa notícia. Em 1980, 228.485 crianças e adolescentes perderam a vida por razões naturais (enfermidades e deterioração da saúde). A mórbida estatística caiu à metade dez anos depois e, em 2013 (última informação disponível), foram 53.852 óbitos, numa queda de 76% em três décadas.
Quem tem mais de 40 anos de idade lembra bem do Brasil da fome, da desnutrição — doenças do subdesenvolvimento — que ameaçavam nossas crianças, em particular nas regiões Norte e Nordeste. Em 1990, a taxa de mortalidade na infância (até 5 anos) chegava a 57,4 por mil nascidos vivos. Vinte anos depois, estava em 17,7 por mil, segundo o relatório Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Por ter cumprido com quatro anos de antecedência a meta de reduzir em dois terços o indicador entre 1990 e 2015, o país mereceu referência elogiosa na publicação da Organização das Nações Unidas.
Foi a combinação de indignação social, pressão internacional e vontade política que permitiu a redução da mortalidade infantil, bem como a erradicação da fome, outra vitória anunciada pela ONU um par de anos atrás. Também nas últimas décadas, o país conseguiu praticamente universalizar o acesso das crianças de 6 a 14 anos ao Ensino Fundamental e avançar na proporção de matrículas dos miúdos de 4 e 5 anos na pré-escola.
Tantos êxitos sugerem que o Brasil tem recursos e competência para perseguir — e alcançar — metas honrosas na área social. No entanto, se os vergonhosos indicadores de morte natural de crianças e adolescentes melhoraram “de forma contínua e acentuada”, segundo o Mapa da Violência, o país foi ladeira abaixo nos óbitos por causas externas no mesmo grupo. Em 1980, homicídios, suicídios e acidentes representavam 6,7% do total de mortes de brasileiros de até 19 anos; em 2013, a participação saltara para 29%.
Diz a publicação: “No período de 1980 a 2013, os diversos componentes das causas externas de mortalidade aumentaram drasticamente sua participação”. Os homicídios passaram de 0,7% para 13,9%; os acidentes de transportes, de 2,0% para 6,9%; os suicídios, de 0,2% para 1,0%. Em 2013, as mortes violentas alcançaram 22.041 crianças e adolescentes brasileiros, 34% a mais que em 1980. Em três décadas, foram 689 mil óbitos. É mais ou menos como desaparecer com uma cidade do porte de São José dos Campos (SP), uma das 30 mais populosas do país, habitada só por menores de 19 anos.
O nome disso é tragédia. Não há crise maior no Brasil do que a epidemia homicida. Por ano, são quase 60 mil assassinatos, segundo estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Mais da metade das vítimas, sabemos por edições anteriores do Mapa da Violência, são jovens de 15 a 29 anos; oito em cada dez têm a pele preta ou parda. A publicação recém-divulgada nos apresenta um diagnóstico ainda mais alarmante, porque trata de crianças e adolescentes.
Na radiografia de 2013, os pesquisadores chamaram a atenção para a escalada de óbitos de adolescentes de 16 e 17 anos. Dos dez mil homicídios, 3.749 ocorreram nessas duas idades. Em 1980, assassinatos eram causa de 9,7% das mortes; em 2013, quase metade (46%). Jovens que deveriam estar cursando o Ensino Médio estão sendo executados. Diz o mapa: “As previsões são sombrias e preocupantes. Se não houver mediação de ações concretas que possibilitem a reversão desse quadro, deveremos ter um crescimento significativo e contínuo da violência homicida nessa faixa etária”.
As vítimas são cada vez mais jovens. Um ano atrás, o Rio de Janeiro chorou e se indignou com a morte de Eduardo de Jesus, de 10 anos, em plena Semana Santa, por policiais durante operação no Complexo do Alemão. Nas últimas semanas, São Paulo se assombrou com o assassinato de dois meninos, de 10 e 11 anos, por forças de segurança do estado e da prefeitura. Em vez de casos isolados, esses crimes podem ser tendência de mais precocidade nos homicídios. A indiferença da sociedade brasileira com essa agenda precisa dar lugar à empatia.
Ou não nos restará futuro.