Por Marina Baldoni Amaral
Ao completar duas semanas, o governo interino de Michel Temer segue com uma administração composta de 24 ministros. Todos homens. Todos brancos. Variam apenas as legendas partidárias.
Mesmo após forte reação da sociedade civil, de movimentos sociais e do meio acadêmico, a ausência de mulheres e negros e negras – que são 51% e 55,3% da população brasileira, respectivamente, segundo dados do IBGE – não fica restrita aos cargos do primeiro escalão da Esplanada dos Ministérios. As pastas de Direitos Humanos, Igualdade Racial e das Mulheres continuam rebaixadas a secretarias. A falta de atenção a esses setores se reflete na composição do governo interino, sem diversidade.
Para o Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos (CNEDH), instância colegiada vinculada à Secretaria Especial de Direitos Humanos, “o que ocorre neste momento é a usurpação” de conquistas. Para o comitê, essas pautas “carregam consigo as marcas de lutas arduamente travadas ao longo de séculos para a conquista de direitos. Em âmbito nacional, os últimos anos foram decisivos para que essas agendas fossem reconhecidas como políticas públicas e ganhassem espaço próprio no Governo Federal”.
O governo interino tentou responder apenas à demanda por mais mulheres no comando de pastas. Logo no primeiro dia de Planalto (13), o ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, explicou que “em várias funções nós tentamos buscar mulheres, mas por razões que não vêm ao caso aqui nós discutirmos, não foi possível”. Temer chegou a dizer que o “problema” seria resolvido com vinda da primeira dama, Marcela Temer, para o Brasília, onde cuidaria da “área social” do governo. Buscaram uma mulher para ocupar a, então, secretaria de cultura (que voltou a ser Ministério), na expectativa de diminuir a as críticas pelo fim do MinC e pela ausência feminina. Pelo menos cinco delas recusaram o cargo, que ficou com Marcelo Calero, secretário Municipal de Cultura do Rio de Janeiro.
Parte da recusa tem a ver com a extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos. As pastas, agora submetidas ao Ministério da Justiça e Cidadania, chefiado por Alexandre de Moraes – que ocupava o cargo de secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo – serão comandadas por Flávia Piovesan, professora de direito constitucional e direitos humanos da PUC-SP e a única mulher até agora a ocupar um cargo de destaque no governo interino.
Acadêmicos, militantes e defensores dos Direitos Humanos (DH) têm manifestado preocupação com o fim do Ministério, uma conquista que começou a ser desenhada no governo Fernando Henrique Cardoso, ao instituir a Secretaria Especial de DH em 1997, e foi aprofundada ao longo dos governos Lula e Dilma, quando se tornou Ministério.
“Conferir o status de ministro ou ministra a determinadas pessoas e temas significa dar-lhes poder e autoridade para, em igualdade de condições, disputarem recursos no conjunto das políticas públicas e nas agendas de governo”, diz André Lázaro, coordenador do Grupo Estratégico de Análise da Educação Superior no Brasil (GEA), da Flacso Brasil.
Para ele, a extinção do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, assim como da Controladoria-Geral da União (CGU) e o debate sobre a existência do Ministério da Cultura, “revela que o governo provisório do presidente interino subordina à racionalidade do mercado o controle da corrupção no Estado, a cultura, os direitos humanos e as políticas para mulheres e igualdade racial. Tornam-se, portanto, questões secundárias face às exigências do mercado de reduzir o custo do Estado”.
A socióloga Mary Garcia Castro, pesquisadora e membro do conselho acadêmico da Flacso Brasil, classifica como “sintomático e revelador” que o primeiro escalão do governo interino não conte com a presença de mulheres. “Vai contra as recomendações internacionais e uma longa campanha de feministas e de movimentos de mulheres também no Brasil por direitos, entre as quais a representação”, lembra.
Para ela, “o recado [do governo interino] está dado, as mulheres são incompetentes e devem seguir o modelo patriarcal, ou seja, serem ‘belas, recatadas e do lar’ para seus maridos, que na vida pública decidirão o que é melhor para elas”.
Na opinião de Garcia Castro, a ausência de mulheres está também de acordo com o “ideário de aliados, como Eduardo Cunha e outros fundamentalistas, para quem gênero é pecado, ou uma ‘ideologia’, desconhecendo sua estatura científica e ativista contra violências por conta do sexo, e da orientação sexual, desigualdades e desrespeitos, inclusive institucionais”.
“Ter passado todas essas secretarias para o Ministério da Justiça é efetivamente um retrocesso”, acredita Miriam Abramovay, coordenadora do programa Estudos e Políticas sobre Juventude da Flacso Brasil. Ela entende que a Juventude “nunca foi um tema prioritário” dos governos brasileiros, mas conquistou avanços importantes desde que a secretaria foi institucionalizada durante o governo Lula. Para a pesquisadora, as juventudes “vão ser tremendamente prejudicadas” e possivelmente “avanços que nós tivemos com muita dificuldade durante esses anos podem ter um grande retrocesso”.
Ministro
Além disso, o perfil do ministro escolhido para a pasta da Justiça e Cidadania tem causado repercussão entre militantes, pesquisadores e movimentos sociais dos Direitos Humanos, devido à sua atuação quando secretário de Segurança do Estado de São Paulo.
A repressão ao movimentos de estudantes secundaristas, a defesa do uso de balas de borracha contra manifestantes e a decisão de tornar sigilosos por 50 anos todos os boletins de ocorrência registrados pela polícia em São Paulo são alguns dos pontos destacados. Suas primeiras declarações no cargo de ministro reforçam a preocupação do setor.
“Ele já anunciou que vai reprimir a movimentos sociais que saiam da linha. O que quer dizer esse “sair da linha”? É uma expressão como dos piores tempos de ditadura militar”, diz o sociólogo Julio Jacobo, coordenador do programa Estudos sobre a Violência da Flacso Brasil e realizador do Mapa da Violência. Para ele, o novo ministro “está levando para nível nacional a filosofia de São Paulo, que é uma filosofia bem específica, de repressão de movimentos sociais. Vamos ter sérios problemas nesta área”.
Julio Jacobo também alerta para o “aparente fim do Programa Nacional de Enfrentamento da Violência e dos Homicídios”. “Não há nada no Ministério que anuncie que vamos continuar a ter uma política de enfrentamento da violência”, diz. Ele indica que, pelo perfil da nova administração, a política de guerra às drogas vai dar o tom: “Tudo que acontece no Brasil em relação à violência, inclusive a questão do extermínio da juventude, volta a ser reduzido ao problema da droga. O final da questão é a droga”. “Vamos ter uma enorme regressão no campo do enfrentamento da violência”, conclui.
Conselhos
Conselhos de direitos das pautas ameaçadas começam a se manifestar. O Conselho Nacional de Direitos Humanos divulgou nota pública de repúdio à extinção do Ministério e declara que “a existência de pasta específica para tratar dos direitos humanos é fundamental para o fortalecimento das ações de reparação, promoção e defesa desses direitos, com as quais o Estado brasileiro está comprometido, tanto por força da legislação nacional quanto dos tratados internacionais ratificados pelo País, bem como em atendimento ao princípio do não retrocesso em Direitos Humanos”.
Também foi divulgada nota na segunda-feira (16) da Sociedade Civil do Conselho Nacional de Juventude (Conjuve), em repúdio à “exclusão do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos e do Ministério da Cultura para essa atual gestão, um profundo retrocesso e a representação simbólica de um governo, sem mulheres e sem negros, que não criará políticas públicas orientadas pela inclusão social, pelo reconhecimento da diversidade e pela garantia radical do empoderamento desses sujeitos de direitos que constroem a sociedade brasileira, mas se guiará desde o patriarcado e a misoginia, o racismo institucional e os interesses do capitalismo financeirizado”.
O texto foi retirado do ar. Segundo o grupo da sociedade civil do Conselho, “a justificativa dada pela área de comunicação é que a nota se tratava de um ‘conteúdo indevido’”. O segmento agora denuncia ser vítima de “censura” e alega que “As organizações da sociedade civil que compõem o conselho têm autonomia para se posicionar sobre todos os temas relacionados à juventude brasileira e aos interesses nacionais, inclusive sobre rupturas democráticas e retrocessos na garantia de direitos”.
O Conselho Nacional das Pessoas com Deficiência (Conande), publicou nota em repúdio ao fim da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, no novo desenho do Ministério da Justiça e Cidadania. As entidades que assinam o texto argumentam que a medida pode prejudicar mais 45 milhões de pessoas com deficiência no país. Na segunda-feira (23), o governo interino editou a Medida Provisória 728/16, criando a Secretaria Especial dos Direitos da Pessoa com Deficiência, agora na estrutura do Ministério da Justiça e Cidadania.
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