Por Marina Baldoni Amaral e Carolina Albuquerque
“Na época da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) tínhamos uma grande esperança de mudanças substancias na sociedade brasileira. A revolução social estava na nossa agenda e aquele sonho era uma pauta cotidiana. Na contramão disso tínhamos uma ditadura, mas também um processo constituinte e movimentos populares”, lembrou Benedito Rodrigues dos Santos, professor e pesquisador da Universidade Católica de Brasília e consultor do Unicef, durante Roda de Diálogo em comemoração aos 25 anos do ECA.
O evento, promovido pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) e pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) em parceria com a Flacso Brasil, Andi – Comunicação e Direitos, Unicef e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), contou com a participação de responsáveis pela construção da política nacional dos direitos da criança e do adolescente, atuais envolvidos na sua implementação, especialistas, representantes do governo, organizações da sociedade civil, organismos internacionais e adolescentes.
No encontro foram apontados avanços e conquistas alcançados pela legislação, e também desafios na garantia de direitos de crianças e adolescentes no país e na implementação e gestão das políticas para essa população.
Gary Sthal, representante do Unicef no país, avaliou que “o Brasil tomou a decisão certa ao desenvolver e aprovar uma legislação tão ampla quanto o ECA”. Entre os principais avanços, ele destacou a queda da mortalidade infantil, “um caso de estudo a nível mundial”, progressos em todos os indicadores de educação, redução do trabalho infantil e dos sub-registros de nascimento.
Na avaliação de Ivana de Siqueira, coordenadora executiva da Flacso Brasil, temos muito mais avanços a comemorar ao longo desses 25 anos do que retrocessos e ameaças. “O ECA é uma política reconhecida internacionalmente como uma das leis mais avançadas de proteção e defesa dos direitos das crianças e adolescentes. Não podemos retroceder”, disse.
Mário Volpi, coordenador do programa Cidadania dos Adolescentes, do Unicef Brasil, lembrou que na época da promulgação do ECA discutia-se se o país estaria “pronto para essa mudança paradigmática ou se deveríamos apenas reformar o código de menores”. Ele acredita que foi uma decisão acertada colocar a criança no centro da agenda política: “o estatuto representa um ponto importante no desenvolvimento do país”.
A encontro foi também uma oportunidade para ouvir memórias de quem participou da construção e concepção da política nacional e direitos da criança e do adolescente. Volpi conta que na década de 1980 havia a crença de que apenas juristas deveria escrever as leias. “Na época, a gente insistiu que era importante envolver os atores sociais, as crianças e adolescentes”, disse, lembrando o exemplo de um grupo de meninos e meninas de rua de Curitiba que insistiam em saber porque professores davam a eles determinadas notas, menores do que tiraram nas provas. “Começamos a discutir isso e os juristas acabaram colocando no Estatuto que os alunos têm direito de pedir revisão de nota e entender os critérios de avaliação”, contou.
Ele apresentou o relatório do Unicef ECA 25 ANOS: Avanços e Desafios, que apontou conquistas importantes como a marca de 300 milhões de doses anuais de vacina e o índice de 60% de partos de mães que fizeram no mínimo sete consultas pré-natal. “Precisamos fazer mais do mesmo, porque muita coisa está dando certo, mas muita coisa ainda precisa de políticas específicas, a estratégia ainda não está alcançando essas crianças e adolescentes”, disse.
Desafios
Entre os desafios destacados pelos participantes estão o enfrentamento aos homicídios de adolescentes, a luta contra a redução da maioridade penal, a aplicação e divulgação do ECA e uma atenção especial para questões de gênero, raça e sexualidade.
Na avaliação de Olympio de Sá Sotto Maior Neto, procurador de justiça do Ministério Público do Estado do Paraná, “cometemos um grande erro achando que a lei, por si só, mudaria a realidade social. O que muda a realidade é o exercício dos direitos garantidos pela lei”.
O professor aposentado da Universidade de Brasília Vicente Faleiros lembra que muitos questionavam se o ECA “ia pegar”. Para ele, a lei “pegou” porque houve um trabalho de mobilização da sociedade por meio dos conselhos de direito e tutelares, que considera “os pilares” do estatuto. Mas Faleiros vê limites no alcance da legislação: “esperar que o ECA resolva todas as questões da desigualdade no Brasil é uma ilusão”
Em sua apresentação sobre a Adolescência brasileira no contexto da desigualdade social, Enid Rocha, Técnica de Planejamento e Pesquisa do Ipea, ressaltou os desafios relacionados às medidas protetivas e socioeducativas vinculadas ao ECA, que ainda apresentam falhas em sua implementação. Para a especialista, é preciso se concentrar no aspecto da gestão para garantir que o ECA se transforme em um verdadeiro sistema de proteção dos direitos das crianças e adolescentes, ressaltando a importância de focar políticas públicas na faixa etária de 15 a 17 anos. A pesquisa do IPEA também revelou as diferenças nas condições de trabalho e estudo entre o total de crianças e adolescentes, mostrando que há um maior número de jovens mulheres negras fora da escola. Segundo o estudo, a juventude brasileira é trabalhadora, aumentou a escolaridade, mas não diminuiu o trabalho, principalmente na informalidade. Para reverter a situação é necessário articular medidas de promoção, defesa e controle social.
A especialista destacou também que o perfil dos meninos e meninas que estão nas medidas protetivas de acolhimento é um perfil parecido com o da inclusão social e semelhante ao do sistema prisional brasileiro: uma maioria de negros e de muito pobres. A solução, segundo ela, passa pela necessidade de articulação entre as políticas públicas relacionadas e pela superação do desafio de concretizar a intersetorialidade no caso das crianças e adolescentes. Ela considera fundamental atingir uma articulação em rede para atender a questão da pobreza multidimensional, dar maior status para a política de proteção das crianças e adolescentes e garantir recursos constantes para as políticas públicas a elas relacionadas (por exemplo no SUAS e no SUS). Estados e municípios, por sua vez, precisam fazer planos para o setor, disse Enid Rocha.
Rodrigo Torres, secretário nacional da Criança e do Adolescente substituto da SDH, destacou que o ECA é uma grande conquista, “mas nossa população ainda conhece pouco”. Para ele, espaços como o evento são importantes para mostrar avanços e divulgar a legislação.
Esse foi um desafio destacado também por Ezequiel Faria de Sena, de 13 anos, morador de São Sebastião, na periferia de Brasília, e integrante do G38 do Conanda. Ele criticou a ausência do ensino do ECA no currículo escolar. “Na minha comunidade as crianças e os adolescentes desconhecem o que foi feito, em tese, para eles. O Estatuto deveria ser tratado na escola, mas não é, a sociedade não consegue ver os seus próprios direitos”, disse.
Aíla Oliveira, de 17 anos, militante do movimento Enegrecer, faz a mesma leitura que Ezequiel e acrescentou que na ausência do ensino sobre o eca, crianças e adolescentes “acabam recebendo informações oriundas do sensacionalismo midiático, que diz que a lei protege o ladrão”. Os meios de comunicação, segundo ela, reproduzem um olhar “racista, elitista e separatista sobre meninos de rua e jovens negros e negras, como se fossem maquinas aptas ao crime, que podem ser marginalizados”.
Outro desafio apontado foi o avanço desigual na garantia de direitos. Para o ministro chefe da SDH, Pepe Vargas, “ainda temos grupos vulneráveis que precisam de um olhar mais apurado”. Essa também é a avaliação do representante da Unicef, Gary Sthal. Para ele os avanços das últimas décadas não estão alcançando os excluídos: os mais pobres, negros, indígenas, quilombolas, os que moram na zona rural ou na periferia das grandes cidades. O relatório do Unicef apontou que crianças indígenas, por exemplo, têm duas vezes mais chances de morrer antes de completar um ano de idade do que a média da população nacional.
Aíla Oliveira também destacou a necessidade de uma política específica para questões que não foram
contempladas pelo Estatuto, principalmente gênero, raça e sexualidade. “O ECA não tem um enfoque no racismo, é preciso falar de como o isso atinge as crianças e os adolescentes e como contribui para nossa evasão escolar e notas baixas”, pontuou.
Ela falou também sobre a importância de reconhecer os adolescentes como sujeitos que exercem suas sexualidades, destacando a importância de políticas de educação sexual, de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e de gravidez indesejada. O aumento na transmissão de HIV e sífilis entre adolescentes foi também destacado como desafio a ser superado no relatório do Unicef e pelo ministro Pepe Vargas.
O professor Benedito Rodrigues dos Santos avalia que justamente por essas ausências, o ECA pode ser alterado, “mas para melhorar”. Ele lembrou que, no contexto da criação do Estatuto, a preocupação era “romper um apartheid social entre criança e menor, por isso foi difícil as crianças pelo recorte de gênero, raça e orientação sexual”.
Uma das violações de direitos mais destacadas são os homicídios de adolescentes. Ivana de Siqueira citou dados do Mapa da Violência, pesquisa da Flacso Brasil, que apontam que, embora tenham diminuído as mortes naturais, houve aumento de 463,6% de homicídios de jovens de 15 a 29 anos entre 1980 e 2012.
Para o ministro, além de uma estratégia nacional de enfrentamento aos homicídios, “é preciso uma discussão local, em cada município do país, fazendo um diagnóstico preciso. Não pode ser uma política só segurança pública, mas de políticas sociais”.
Maioridade Penal
Para o vice-presidente do Conanda, Carlos Nicodemos, “a questão da redução da maioridade penal é uma da piores pautas que podemos deixar consolidadas”. Ele disse que o encontro faz parte da estratégia do Conanda, além de outras idealizadas até o final do ano, para “dar uma resposta, sair da defensiva e apresentar uma agenda positiva dos direitos da criança e do adolescente no Brasil”.
Irmã Maria do Rosário Leite Cintra, presidente do Instituto para o Desenvolvimento Integral da Criança e do Adolescente (Indica), atuou na formulação do ECA e questiona: “Quem está conversando com nossos deputados e senadores sobre a redução da maioridade penal?”, lembrando que durante a Assembleia Nacional Constituinte viajava frequentemente à Brasília para dialogar com congressistas sobre as necessidade de garantir direitos das crianças e adolescentes no texto da Constituição Federal.
Benedito dos Santos lembrou que durante a formulação do ECA “havia cheiro de esperança no ar. Viemos de lá para cá em um crescendo, com conquistas, e pela primeira vez temos a perspectiva de derrota com a redução da maioridade penal”. Para ele, o ECA foi mais um projeto político do que um projeto legal. “O que sinto falta hoje é um projeto político para o país”, disse.
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