Ele era criticado por não ter mochila, usar tênis gasto e ser filho de pedreiro.
Hoje bibliotecário da Câmara, homem tem livro indicado ao Prêmio Jabuti.
O brasiliense Cristian Santos não tem dúvidas de que a paixão pela leitura o permitiu mudar de vida. Vendedor de cocadas na infância e na adolescência para ajudar os pais, ele chegou a ser impedido de assistir aulas em uma escola pública por não ter condições de comprar um uniforme novo. O jovem se refugiava das críticas dos colegas na biblioteca, onde encontrou livros que o ajudaram a ingressar na universidade e conquistar cinco graduações.
A primeira obra com que o atual bibliotecário da Câmara dos Deputados teve contato foi “A Arca de Noé”, quando tinha 6 anos, lida por uma das cinco irmãs. A fantasia o estimulava diante da realidade complicada. O pai era pedreiro e tinha dificuldades em sustentar a casa sozinho. A família passava por necessidades.
“O pão, normalmente sem manteiga, era o do dia anterior, vendido pela metade do preço. O gás, raridade lá em casa, era substituído pela lenha, que alimentava uma lata de tinta transformada em fogão de duas bocas”, lembra Santos.
Aos 7 anos, o garoto sentiu na pele os reflexos da pobreza. Único na turma a não ter o uniforme, precisou usar a camiseta de um colega para fazer a foto de final de ano da escola. “Tornei-me o Welinton. Pela primeira vez em tantas outras, a miséria [veio] negar minha identidade.”
Diante do quadro, a mãe do rapaz decidiu comprar cocos secos no mercado e preparar o doce para que ele pudesse vender pelas ruas de Brazlândia quando completou 9 anos. O lucro era usado na aquisição de um novo fruto, verduras em oferta e o passe escolar.
“Meus clientes eram a vizinhança que, em sua grande maioria, não ignorava o porquê de eu vender cocada. Penso que muitos compravam os doces por compaixão”, afirma.
Já na adolescência, outra atribuição do garoto passou a ser cuidar da casa. Ele acordava às 4h para ferver a água do café e passar pano no chão. Uma hora depois embarcava em um ônibus rumo à W3 Sul para ir para o colégio Elefante Branco – a 45 quilômetros de casa. Santos lembra de aproveitar os minutos antes do início da aula para “pausadamente” comer, longe dos olhares e risos dos colegas.
“Fui vítima de bullying escolar pelo tênis velho, por não ter mochila e pelo fato de o meu pai ser pedreiro. Era uma crueldade absurda. Recordo-me, dessa mesma época, ter sido motivo de chacota por parte de meus colegas de turma ao descobrirem que levava um pãozinho francês amanteigado, prensado entre meus livros. Era minha refeição a ser devorada no recreio, já que não tinha dinheiro para a lanchonete”, conta.
“No nível médio, fui impedido de frequentar as aulas pela direção da escola por usar um uniforme antigo. Uma semana intensa dedicada à venda das cocadas me permitiu adquirir a camiseta. Impossibilitado de comprar os livros didáticos, consumia todos os meus recreios copiando no caderno as tarefas a serem entregues na próxima aula. Era um sufoco! De todo modo, sempre era escolhido pelo conselho escolar como o melhor aluno da turma”, completa
Sem dinheiro para pagar a taxa de inscrição do vestibular, o jovem precisou esperar seis meses depois do fim do ensino médio para concorrer a uma vaga na Universidade de Brasília. Santos se preparou com a ajuda de apostilas velhas achadas em uma biblioteca. Ele também usou o período para batalhar bolsas de estudo em francês, inglês e espanhol.
“Era com o dinheiro dos doces que bancava as fotocópias dos textos, o almoço no restaurante universitário – R$ 0,50, por refeição, o menor valor, já que era classificado pelo serviço social da UnB como aluno carente – e as passagens de ônibus. Nem sempre as vendas eram boas. No primeiro semestre do curso de biblioteconomia, por exemplo, minhas aulas terminavam às 20h, e ia a pé, do Minhocão até a rodoviária, já que não tinha condições de pagar a tarifa do circular”, lembra.
Aos 19 anos, o garoto conseguiu estágio e passou a ganhar R$ 250 por mês. O dinheiro foi usado em um cursinho preparatório para o cargo de técnico judiciário. Aprovado, ele deixou de vender cocadas e passou a sustentar os pais e as cinco irmãs.
Outras formações e prêmios
Após concluir biblioteconomia, Santos foi aprovado em primeiro lugar no concurso do Superior Tribunal de Justiça para o cargo de bibliotecário. Na mesma época ele passou a apresentar, na condição de bolsista, trabalhos científicos na Argentina, Finlândia, Noruega e Estônia.
“Numa tarde chuvosa, fui a uma daquelas lojas de R$ 1,99 a pedido de minha mãe. Encontrei numa estante de canto ‘A morte de Ivan Ilitsch’. Voltei para casa sem o escorredor de macarrão, mas na companhia de Tolstoi. A novela me feriu, e minha paixão pela literatura alcançou um nível alarmante. Acabei me graduando em língua e literatura francesas e depois em tradução. Nesse período, estudei por três meses na Universidade Laval, Canadá, graças à hospedagem gratuita de uma família católica”, diz.
O homem fez ainda filosofia e teologia, além de mestrado em ciência da informação – a dissertação foi premiada em um concurso na Argentina. Ele chegou a ser admitido para o curso anual da Scuola Vaticana di Paleografia, mas não pôde fazer porque não foi liberado pela direção do STJ.
Depois, o ex-vendedor de cocadas fez doutorado em literatura e práticas sociais. Os estudos o levaram a se aprofundar na obra de Michel Foucault e o estimularam a se preocupar em ser mais humanista e culto.
“Defendo que todo bibliotecário é, fundamentalmente, um intelectual, ou seja, como disse Foucault, um sujeito que tem por papel ‘mudar algo no espírito das pessoas’. Um bibliotecário letárgico é, portanto, um engodo, um desserviço à sociedade”, afirma Santos.
A tese dele virou livro e aborda a representação de padres e beatas na literatura. “Na obra, discuto as razões pelas quais a literatura do país representa os personagens religiosos de forma caricata, sempre associados ao atraso moral e econômico. ‘Devotos e Devassos’ acaba de ser indicado para o Prêmio Jabuti em duas categorias: melhor crítica literária e melhor capa.”
Exemplo em casa
Para o servidor público, o sucesso tem a ver com o que via no dia a dia. Mesmo diante das dificuldades e com pouco conhecimento acadêmico, Santos conta que o pai tinha “formação política invejável”.
“Lembro-me dele, durante o jantar, discutindo a respeito da inflação galopante e da necessidade de gente do povo se candidatar a cargos públicos eletivos”, conta.
Uma das experiências que o marcou é de quando, acompanhando o pai no trabalho, foi repreendido por querer brincar com os pregos tortos e enferrujados. O garoto ouviu que não podia transformar em vaquinhas e cavalos algo que não lhe pertencia.
A mãe, segundo o servidor público, tinha personalidade parecida. Ela oferecia água fresca aos garis que varriam a rua e abrigava camponeses que chegavam à região.
“A pobreza não impediu que ambos fossem sensíveis ao sofrimento daqueles que eram ainda mais carentes de pão e de afeto. Meu pai não raramente aparecia em casa com moradores de rua, alimentando-os e vestindo-os. Uma vez, rumo à igreja, voltou com um senhor completamente bêbado; lavou-o e alimentou-o e o acolheu por duas semanas, até conseguir uma passagem de ônibus que o levasse de volta à Bahia”, diz.
Santos afirma que os exemplos foram essenciais para que ele ter forças para transformar a vida que levava. “Não poderia alcançar mobilidade por mim mesmo. Somente virei a mesa porque fui estimulado.”
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