Coletivo negro fez ato em aula de pós-graduação do Instituto de Biologia.
Professor britânico diz que foco das suas aulas é a prática da língua inglesa.
Ana Carolina Moreno
Do G1, em São Paulo
Uma aula de pós-graduação do Instituto de Biologia da Universidade de São Paulo (USP) virou alvo de uma manifestação do coletivo Ocupação Preta, formado por estudantes negros e negras da instituição com o objetivo de debater o racismo no campus e defender a criação de cotas raciais na universidade. Na quarta-feira (22), a disciplina English for Science (Inglês para a Ciência), ministrada pelo pesquisador britânico Peter Lees Pearson para estudantes de mestrado e doutorado da USP, foi “ocupada” por um grupo de cerca de dez estudantes do coletivo, interessados em debater o artigo indicado pelo professor para ser lido e discutido em aula.
Em uma nota de repúdio publicada no Facebook nesta sexta (24), o coletivo, que preferiu não indicar um porta-voz para dar entrevistas, afirmou que decidiu fazer a intervenção surpresa na aula para chamar a atenção para o fato de que apenas um entre os cerca de 20 alunos matriculados na disciplina é negro, e por causa do “conteúdo extremamente racista e ofensivo do material proposto”.
Em entrevista ao G1, o professor Pearson explicou que a disciplina tem como foco principal a prática do inglês oral e escrito, e que todas as semanas indica artigos de áreas diversas, mas sem aprofundamento específico, sobre os quais os alunos precisam ler e opinar durante a aula, em inglês, para depois redigir uma dissertação, também na língua inglesa.
“Houve uma grande deturpação. Eles disseram que eu mudei a língua da aula para o inglês para eles não entenderem, mas a minha aula é em inglês, a disciplina chama Inglês para a Ciência”, explicou o professor. “Eles não foram convidados. Eles simplesmente entraram, disseram que queriam discutir uma questão, eu disse que tudo bem, mas eles não queriam fazer isso em inglês, e eu disse que minha aula era em inglês.”
Segundo o grupo, o professor teve uma postura “extremamente racista” porque defendeu subjetivamente o texto e não valorizou o diálogo, “diversas vezes batendo palmas em cima da falas dos estudantes negros, dizendo ‘Shut up!’ e se recusando a fazer a discussão em português, mesmo sabendo que havia estudantes que não entendiam inglês e por isso, não podiam se defender”.
Ao G1, Pearson negou a acusação de racista, e disse que se sentiu “extremamente ofendido” pelo ato. “Eles começaram a gritar ideologias e slogan políticos, ocuparam quase duas horas das quatro horas da aula, em detrimento dos meus alunos.”
QI e raças
O texto que o professor indicou para o debate da última quarta discute hipóteses levantadas pelo cientista James Watson, um dos pesquisadores que co-descobriram a estrutura do DNA, na década de 1950. Em 2007, Watson fez declarações à imprensa vinculando níveis de inteligência a diferentes etnias e origens geográficas. Desde então, o cientista perdeu cargos e credibilidade junto à comunidade acadêmica, e em 2014 anunciou que venderia a medalha do Prêmio Nobel, que ganhou em 1962 pela co-descoberta, porque necessitava de dinheiro.
Pearson, que iniciou sua carreira acadêmica no Reino Unido, mas trabalhou durante anos nos Países Baixos e nos Estados Unidos, afirmou que conhece Watson pessoalmente, e que o colega da área de genética deu uma declaração “muito lamentável”.
“Ele é um homem muito honesto, mas é muito espontâneo, fala o que passa pela cabeça”, disse o geneticista da USP.
Pearson não refutou a precisão científica da hipótese de Watson, que defendeu que investimentos em educação em países africanos teriam pouco retorno. A mensagem implícita da declaração, que fez com que Watson fosse condenado ao ostracismo, é a de que, geneticamente, as populações africanas têm inteligência inferior à de outras etnias. Mas o professor da USP, afirmou que, atualmente, não existe tecnologia suficiente para comprovar ou refutar essa hipótese.
Por sua vez, o coletivo Ocupação Preta afirmou, pelo Facebook, que “os estudos de Watson foram rechaçados pela academia por serem baseados em estudos de cefalometria (herdeira cientifica da frenologia, um ramo pseudocientífico que serviu de base pra diversas atrocidades no meio médico e sobretudo psiquiátrico-manicomial) e análises de aplicações de testes de QI sem análises psicossociais”, e que “Watson foi inclusive exonerado de seu cargo de conselheiro no Spring Harbor Laboratory (CSHL) em Nova Iorque em virtude de suas afirmações sobre a inferioridade cognitiva de pessoas negras”.
Cotas
Pearson afirmou que não é contra políticas de ação afirmativa. “Não tenho nada contra ações afirmativas, mas acho que elas precisam ser regulamentadas, precisam fazer sentido”, explicou ele.
Segundo o britânico, quando ele veio viver no Brasil, o que mais o chocou foi o fato de estudantes de famílias ricas poderem estudar na USP sem pagar nada. “O que acontece no Brasil é que o dinheiro determina. Os pais paga para esses jovens terem educação em escolas privadas. É uma visão reversa do mundo, e isso precisa ser reconsiderado seriamente. Isso precisa mudar. Eu não sei dizer como, mas precisa mudar, porque é um anacronismo.”
Ele afirmou ainda que se ocupa da parte científica da questão genética, que não pode ser explicada com a política. “Por um lado, eu me simpatizo com a questão dos brasileiros de ascendência africana, que precisa ser considerada. Mas essas pessoas estavam lá só para fazer uma declação política.”
O grupo esclareceu que a intenção era ampliar a representatividade do ponto de vista da população negra no debate. “Contestamos, nos manifestamos contrários à escolha do artigo e fomos enegrecer a discussão com nossos posicionamento de negras e negros que somos, estudantes das mais diversas áreas da universidade que sentem o racismo todos os dias, resistindo e combatendo com muita força”, disseram os estudantes, por meio da nota.
Vínculo com a USP
O professor britânico se mudou para o Brasil em 2005, depois de se aposentar, para acompanhar sua esposa, uma geneticista brasileira, e diz que tem vínculo de professor visitante com a USP. Ele participa do Centro de Estudos do Genoma Humano e de Células-Tronco, e diz que não recebe salário para ministrar a disciplina English for Science.
Segundo ele, as aulas não acontecem todos os anos, e têm cerca de 20 estudantes de diversas áreas da USP, como biomedicina e psicologia, escolhidos de forma a dar diversidade à turma. Ele afirma que, neste ano, só tem um aluno negro na classe, mas que isso se deve à baixa procura de candidatos. “Não posso ter uma turma muito grande porque seriam muitas dissertações para corrigir e não teria tempo”, explicou.
A motivação para criar a disciplina, há cerca de seis anos, é o fato de a USP ter um volume muito pequeno de publicações e citações em inglês, o que afeta a credibilidade e o alcance internacional da pesquisa feita no Brasil. “O inglês é a língua franca da ciência. Os estudantes que chegam ao nível de pós-graduando são muito inteligentes, mas o inglês deles ainda é muito ruim.”
Pearson diz que essa foi a segunda vez que usou o texto sobre as hipóteses de James Watson. Porém, após o ato, ele diz que considera deixar de ministrar a disciplina. “Tenho 76 anos, não preciso desse aborrecimento”, disse o britânico.
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