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O quarto ano de faculdade de uma estudante da Universidade de São Paulo (USP) começou como todos os outros depois do Carnaval de 2014. Mas, desde março, uma série de ameaças por meio de bilhetes anônimos que se concretizou, em agosto, em uma tentativa de estupro dentro da Cidade Universitária, acabou fazendo com que a jovem mudasse de rotina e perdesse aulas. Agora, ela aguarda ansiosamente pelo fim do semestre.

O caso aconteceu durante o período de greve da instituição e, como ela foi atacada por trás e ferida na cabeça, o suspeito não pode ser identificado. Mas, quando as aulas foram retomadas, no início de outubro, a estudante, matriculada no quarto ano de um curso da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), decidiu publicar sua história no Facebook.

“Se todos conhecessem o caso, pelo menos eu teria mais olhos voltados pra mim pra garantir um pouco minha segurança”, disse ela, que deu entrevista ao G1 sob a condição de que sua identidade fosse preservada.

O caso da estudante repercutiu nas redes sociais, foi registrado em um boletim de ocorrência na delegacia, reportado à Guarda Universitária e um ofício foi encaminhado a diversos órgãos da USP, como a Ouvidoria, a chefia de seu departamento e a direção de sua faculdade. Porém, ele nunca chegou às estatísticas oficiais do SOS Mulher, um programa da Superintendência de Assistência Social (SAS) dedicado ao atendimento às mulheres vítimas de estupro na Cidade Universitária. Na Superintendência de Prevenção e Proteção Universitária, o caso também não é citado em levantamento obtido pelo G1 sobre asocorrências de violência sexual contra mulheres no campus entre 2012 e novembro de 2014.

Agora, a jovem se uniu a coletivos feministas e conta com o apoio de amigos para poder frequentar as aulas. Para evitar novas tentativas de assédio, ela instalou uma câmera escondida no carro e só anda acompanhada e munida de spray de pimenta. Trancou as aulas que cursaria no período noturno e só permanece no campus durante a luz do dia.

“Eu sempre gostei muito de vir pra cá, acho que é um privilégio poder frequentar esse espaço da universidade. Agora, desde que aconteceu isso, não tenho nenhum momento de prazer aqui dentro. Estou sempre extremamente atenta, olhando pra todos os lados o tempo todo, desconfiando de todo mundo, o que é pior de tudo.”

A superintendente de Prevenção e Proteção Universitária Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer afirmou que o caso da estudante foi registrado na Guarda Universitária, mas há pouco a se fazer para encontrar o suspeito. “Nós temos cópias dos bilhetes que ela recebeu. Ela não deu o nome dele, não sabe quem é. Do ponto de vista de uma ação mais concreta, não há o que fazer”, disse Ana Lúcia.

Leia abaixo o relato da estudante ao G1:

Quando eu saía da aula e ia pro meu carro, pra ir embora pra casa, eu comecei a encontrar bilhetes no para-brisas do carro, do lado de fora. Bilhetes falando ‘você ainda vai ser minha’, ‘não pense que eu te esqueci’, já com tons de ameaça”

Ameaças
“Em março desse ano, eu comecei a receber bilhetes anônimos dentro da minha mochila, dentro da sala de aula. Nos períodos em que eu saía da sala no intervalo, ou mesmo quando não tinha intervalo na aula. Colocavam dentro da minha mochila bilhetes com supostos elogios. Começou de uma maneira mais suave. Depois, eu comecei a andar com a minha bolsa, não deixava ela mais sozinha. E então, quando eu saía da aula e ia para o meu carro, pra ir embora pra casa, eu comecei a encontrar bilhetes no para-brisas do carro, do lado de fora. Bilhetes falando ‘você ainda vai ser minha’, ‘não pense que eu te esqueci’, já com tons de ameaça.

Nesse momento eu fui falar com o departamento da faculdade em que eu estudo, e a resposta foi de que se faria uma passagem em sala, para contar sobre o caso, contar que estava acontecendo esse caso. Mas, por conta da greve, isso não aconteceu.

Um pouco antes de começar a greve, um amigo meu que está sempre comigo recebeu um bilhete na mochila dele, na mesma aula, dizendo pra ele se afastar de mim, com ameaça, falando que era melhor pra ele. Então a gente foi fazer um BO [boletim de ocorrência] na polícia. Um BO de ameaça, no meu nome e com o nome dele, mas sem suspeito. Então o BO foi arquivado, foi só pra fins burocráticos que eu fiz esse BO. Então, depois de falar com o departamento, a universidade entrou em greve. Minha faculdade entrou em greve de professores e funcionários, e essa greve durou acho que quatro meses, algo assim.”

Eu fui surpreendida por alguém que veio pelas minhas costas, sem eu conseguir enxergar. E teve uma tentativa de estupro, na qual ele me imobilizou, sem deixar que eu visse o rosto dele. Eu consegui buzinar pra chamar a atenção, e antes de fugir ele falou meu nome várias vezes, falou que ele tinha avisado, e bateu meu rosto, me machucou antes de ir embora, pra eu não consegui ver”

Ataque
“Nesse período de greve eu não vim pra faculdade. Não frequentei aqui. Eu vim um só dia, em agosto, pra fazer um trabalho com amigos. Vim encontrar meus amigos pra fazer um trabalho. Quando eu fui pra faculdade de arquitetura, parei [com o carro] lá antes de ir pra minha faculdade. Eu fui surpreendida por alguém que veio pelas minhas costas, sem eu conseguir enxergar.

E teve uma tentativa de estupro, na qual ele me imobilizou, sem deixar que eu visse o rosto dele. Eu consegui buzinar pra chamar a atenção, e antes de fugir ele falou meu nome várias vezes, falou que ele tinha avisado, e bateu meu rosto, me machucou antes de ir embora, pra eu não consegui ver.

Assim eu não consegui ver a cara do suspeito, mas eu fui pra delegacia, fui até o IML [Instituto Médico Legal] fazer o exame, e fiz um outro BO de agressão, e assédio.

Mas sem suspeito de novo, a polícia me indicou que eu viesse até a USP, pra procurar junto com a segurança aqui, com a Guarda Universitária, as imagens das câmeras que poderiam ter filmado ele me seguindo, ou o próprio ataque.

Inclusive eu não sabia que era papel da polícia fazer isso [buscar provas]. Então eu vim, fui conversar com a Guarda Universitária, e o que eles me falaram é que nenhuma das câmeras que tem na USP, nenhuma delas funciona há mais de um ano. Então não teria como resgatar nenhum tipo de imagem que pudesse ajudar na investigação.

Eu respondi isso pra polícia, e desse jeito eles disseram que ia ficar arquivado o BO, ia ficar esperando que eu levasse o nome de algum suspeito, que as investigações não iriam continuar sem um suspeito.”

Escrevi junto com a minha advogada e enviei um ofício, no qual eu coloquei o BO, pra todas as instâncias da universidade, que poderiam me proteger. (…) Todas as respostas foram no sentido de encaminhar o meu pedido pra Guarda Universitária, porque era com eles essa questão e ninguém podia fazer nada”

Resposta da USP
“A partir daí eu comecei a ir atrás, pela universidade, de recursos pra poder me proteger, pra poder continuar o semestre, uma vez que as aulas voltaram depois desse ataque. Procurei o departamento, o chefe de departamento não se encontrou comigo em nenhum momento, não consegui ter nenhum tipo de retorno pra que essa passagem em sala fosse feita, pra que fosse avisado que estavam acontecendo casos como esse. Então não tive apoio nenhum dentro do departamento.

Escrevi junto com a minha advogada e enviei um ofício, no qual eu coloquei o BO, pra todas as instâncias da faculdade – da universidade, na verdade –, que poderiam me proteger: a segurança [Superintendência de Prevenção e Proteção Universitária], a Ouvidoria, a direção da faculdade, o chefe de departamento, a Prefeitura do campus.

Eu recebi algumas respostas. Não de todos. O departamento, por exemplo, não respondeu nada. A direção da faculdade me chamou pra conversar, falou que tinha encaminhado [a denúncia]. Todas as respostas foram no sentido de encaminhar o meu pedido pra segurança, pra Guarda Universitária, porque era com eles essa questão e ninguém podia fazer nada.

Não tem poder de investigação, então seria um caso de polícia e da segurança do campus.
Nesse sentido eu fiquei realmente sem resposta, porque a Guarda Universitária respondeu, foi um e-mail com o plano de implementação das novas câmeras pra daqui a alguns meses. É um novo plano pro futuro, mas eu não sei até que ponto isso pode me interessar, ou pode me proteger, uma vez que isso é um projeto futuro.

Na primeira conversa que eu tive com eles, fui até o lugar onde aconteceu o assédio, a gente meio que recriou o momento pra eles entenderem como tinha acontecido, e depois daquela reunião mais nada aconteceu, só esse e-mail falando do novo plano das câmeras, e falando que se tivesse alguma nova informação pra eu ir atrás.”

Em nenhum momento me indicaram nenhum órgão de apoio, tanto que depois de tudo isso que aconteceu comigo, todas as atitudes que eu tomei foram no sentido de buscar aqui dentro da universidade que se fizesse uma cartilha mostrando como denunciar”

Falta de apoio
“Sempre o que foi me orientado foi que eu fizesse uma emboscada com meus próprios colegas e que desse jeito a gente pudesse pegar ele. Tanto a polícia quanto a guarda, foi isso que me sugeriram.

Como eu não me sujeitei a passar de novo, me expor a um caso de assédio de novo ou de agressão, pra poder pegar essa pessoa, eu resolvi publicizar e a partir daí foi meu jeito de proteção.

Em nenhum momento me indicaram nenhum órgão de apoio, tanto que depois de tudo isso que aconteceu comigo, todas as atitudes que eu tomei foram no sentido de buscar aqui dentro da universidade que se fizesse uma cartilha mostrando como denunciar.

E ainda tem sempre um discurso da universidade no sentido de privar que outras pessoas entrem no campus, e sempre no sentido de que essas ameaças estariam vindo de fora.

O que eu acho importante pautar nessa questão é que foi provavelmente um aluno ou funcionário que fez isso, até porque eu estava dentro da sala de aula. O assédio aconteceu às 16h, na luz do dia, a faculdade estava cheia, mas como tem muito canto escuro, tem pouca Guarda Universitária, os guardas universitários são pouquíssimos, e pouquíssimas mulheres na Guarda Universitária também.”

Desde então eu cancelei a matrícula que eu tinha feito nas minhas matérias noturnas. Eu só frequento a faculdade à tarde agora. Nunca ando sozinha. (…) Ando com spray de pimenta, e com uma câmera escondida dentro do meu caso pra caso alguém venha de novo colocar bilhete”

Proteção própria
“Eu resolvi publicizar meu caso há alguns meses, quando voltaram as aulas, pra poder me proteger. Se todos conhecessem o caso, pelo menos eu teria mais olhos voltados pra mim pra garantir um pouco minha segurança.

A universidade não estava dando nenhum tipo de apoio pra que eu continuasse frequentando as aulas, que eu conseguisse continuar com a minha vida acadêmica apesar dessas ameaças, e continuasse convivendo ali no prédio com alguém que me ameaçou e me assediou dessa maneira.

Desde então eu cancelei a matrícula que eu tinha feito nas minhas matérias noturnas. Eu só frequento a faculdade à tarde agora. Por receio, por medo. Nunca ando sozinha, só consigo andar acompanhada até pra chegar e pra ir embora da faculdade, e todo o período que eu estou aqui. É uma situação de extrema fragilidade.

Ando com spray de pimenta na bolsa, e com uma câmera escondida dentro do meu caso pra caso alguém venha de novo colocar bilhete ou algo assim, que consiga flagrar, consiga pegar alguma imagem do suspeito.

Todo tipo de proteção, minha proteção mesmo, até de integridade física, eu que tenho ido atrás, falando com diversas professoras, muitos grupos feministas.”

Quando eu publicizei, eu recebi muito apoio de professores e alunos, e recebi também mais de sete, oito denúncias, de outros casos que aconteceram aqui dentro, de mulheres me mandando individualmente relatos de outros casos que aconteceram. (…) Todos de maneira anônima”

Outras denúncias
“Quando eu publicizei, eu recebi muito apoio de professores e alunos, e recebi também mais de sete, oito denúncias, de outros casos que aconteceram aqui dentro, de mulheres me mandando individualmente relatos de outros casos que aconteceram. Casos parecidos, casos diferentes, mas muitos casos de assédio e agressão aqui dentro.

Todos de maneira anônima, nenhum desses casos foi publicizado.

Me juntei com uma série de outras mulheres de coletivos feministas aqui dentro da USP, que me deixaram ainda mais claro de que meu caso não era o único, que existem diversos casos na universidade, aqui no Campus Butantã, também. Dentro da minha própria faculdade, diversos casos diferentes e que não são publicizados por medo, por medo da exposição mesmo.

Eu acho que eu nem teria divulgado meu caso, teria passado por esse constrangimento todo, se não fosse uma questão de eu garantir a minha segurança, e que eu continuasse fazendo o semestre.

Junto com esses coletivos de mulheres que fazem encontros aqui. Tem um debate muito grande que não é exposto, com propostas, com discussões, pra ajudar a questão da violência contra a mulher dentro do campus. E nada disso é encaminhado.

De uma maneira institucional você fica completamente perdida, tendo que correr atrás de qualquer órgão que vai te dar qualquer tipo de segurança ou apoio psicológico.”

Não me sinto mais acolhida aqui, à vontade, de maneira alguma, sendo que foi um dos lugares que eu mais almejei estar. (…) Estou tentando terminar o semestre a qualquer custo, porque concentração mesmo, capacidade de focar no que eu vim fazer aqui, que é estudar…”

Vida no campus
“Eu sempre gostei muito de vir pra cá, acho que é um privilégio poder frequentar esse espaço da universidade. Agora, desde que aconteceu isso, não tenho nenhum momento de prazer aqui dentro. Estou sempre extremamente atenta, olhando pra todos os lados o tempo todo, desconfiando de todo mundo, o que é pior de tudo. Não tem como ficar em paz nesse sentido, ou ficar tranquila pra conversar com as pessoas que eu não conheço.

O fato de nunca poder estar sozinha é infernal. Eu já cheguei a faltar em aula por não ter companhia pra chegar ou ir embora, pra não correr o risco de ficar sozinha. Os momentos de vivência, de convivência, de qualquer tipo de confraternização na faculdade eu não frequento mais, porque são todos à noite e eu não tenho essa segurança.

Eu estou tentando terminar o semestre a qualquer custo, porque concentração mesmo, capacidade de focar no que eu vim fazer aqui, que é estudar…

Atividades extra-acadêmicas, todas as atividades que eu tinha por fora eu parei com todas, porque eu fico aqui o tempo estritamente necessário. Venho pra aula e vou embora, sempre acompanhada, e essa relação [com a USP] se desfez.

Não me sinto mais acolhida aqui, à vontade, de maneira alguma, sendo que foi um dos lugares que eu mais almejei estar. Eu sei que é pra poucos, mas para as mulheres aqui eu sei que não é fácil.

De ter comentado meu caso, de ter publicizado meu caso, eu consegui muito apoio, e consegui compreender que as mulheres realmente formam suas estratégias próprias aqui. Os grupos feministas aqui dentro formam estratégias próprias aqui dentro para que as pessoas se protejam.

Essas meninas dos grupos feministas já foram me acompanhar pra eu não ficar sozinha. O absurdo é que a gente não consiga nenhum tipo de apoio dentro da universidade e a gente tenha que fazer a nossa própria segurança.”