fbpx

Após denúncias de estudantes de Medicina, relatos de outros cursos e até de funcionárias chegam aos grupos

SÃO PAULO – Foram quatro anos vivendo um relacionamento abusivo que só foi reconhecido depois da proximidade com o movimento feminista dentro da Universidade de São Paulo (USP). Uma agressão física em 2011, durante o primeiro ano do curso de Ciências Sociais, quando Letícia Pinho, hoje com 26 anos, se virava sozinha pra cuidar do filho então com três anos, culminou com a separação.

 Eram várias violências psicológicas, ele me desqualificava, me xingava. Na época, eu estava me matando de estudar pra entrar na USP e ele dizia que eu nunca ia ter capacidade de entrar. Ele não me ajudava com coisas domésticas porque era uma forma de não sobrar tempo para eu estudar. Quando eu entrei aqui, ele ficou mais agressivo. Até que um dia ele me bateu. E eu só fui perceber que meu relacionamento era abusivo aqui no movimento (feminista da USP), eu sentia um profundo mal estar mas não sabia o que estava acontecendo — conta a aluna que diz que chegou a procurar uma delegacia para denunciar o ex-marido mas desistiu pela burocracia.

Hoje, Letícia faz parte da Frente Feminista da USP, organização integrada pelos diversos grupos feministas que surgiram nos últimos anos na instituição, e o coletivo Pra Além dos Muros, associado ao movimento nacional das Mulheres em Luta. Ela é uma das alunas que se dedica em receber dezenas de relatos de violência contra a mulher dentro do campus e que está à frente das manifestações sobre os casos ocorridos na Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) que vieram à tona depois de audiências públicas realizadas pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo.

No dia 17, a Frente Feminista reunirá os coletivos e as mulheres do Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp) para um ato na reitoria da USP onde será protocolado uma carta de reivindicações com base nas discussões que aconteceram no segundo Encontro das Mulheres da USP, realizado em agosto deste ano, e no quinto Encontro de Mulheres Trabalhadoras da USP, que acontecerá na semana que vem.

Entre os pedidos, estão: aumento da frota de circulares em todos os campi; mais iluminação; criação de uma ouvidoria que sistematize e encaminhe os casos de violência contra a mulher na USP; abertura de inquéritos administrativos que levem à responsabilização e punição dos agressores; que a universidade se responsabilize pelos casos de violência através da criação do Centro de Referência (interdisciplinar com envolvimento da comunidade universitária; com ouvidoria, tratamento psicológico, assistência judiciária, levantamento de dados, políticas preventivas, etc); campanhas institucionais da USP sobre violência contra a mulher na universidade, a começar pelos trotes na calourada; aumento do efetivo feminino da Guarda Universitária, com preparação para casos de violência contra a mulher; que a Superintendência de Assistência Social da Universidade (SAS) se responsabilize pelos casos de violência no Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (CRUSP) e que os agressores sejam expulsos da moradia e criação de disciplina obrigatória de gênero e sexualidade para todos os cursos.

Sania Bomfim, diretora de base do Sintusp, afirma que há muitos anos o sindicato recebe reclamações de funcionários que são assediadas moralmente por professores e diretores da instituição. No entanto, nenhuma delas teve coragem de formalizar uma denúncia.

— É uma categoria basicamente machista, temos problemas de opressão no cotidiano porque a maioria das mulheres ocupa cargo de secretária e assistente e os homens estão em cargos superiores. A criação de um centro com ouvidoria específica para receber essas denúncias é essencial — diz a diretora que também reivindica mais vagas na creche para as funcionárias.

A Frente Feminista da USP nasceu em 2011 depois de uma aluna da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP) denunciar que seu namorado, também estudante da faculdade, a agrediu. Outras alunas que também já tinham sido agredidas pelo mesmo estudante se mobilizaram contra ele e surgiu a ideia de organizar um movimento.

— O movimento feminista daqui foi determinante para mim porque me mostrou que o que eu passava era violência e hoje em dia estou melhor. O movimento feminista pode mostrar para as meninas o que é isso que elas passam, que elas podem dar um basta. Às vezes, não é uma agressão física, é um namorado que proíbe uma roupa e que elas não sabem reconhecer o machismo. Comigo foi isso e a história se repete com muitas, por isso me dedico tanto. Quando a frente começou a ficar conhecida pelas estudantes, várias meninas começaram a nos procurar. A gente não conseguia mais fazer a luta política, acabamos só cuidando das vítimas que nos procuram e foi preciso criar uma comissão de casos dentro da frente para organizar isso – conta Letícia.

A aluna do segundo ano de História e integrante do coletivo feminista dos cursos de História e Geografia da USP, Maria Bonita, Beatriz Bigoto, de 19 anos, conta que muitas meninas que se aproximam dos coletivos têm histórico de agressão ou de abuso.

— Elas procuram um espaço de mulheres até para conseguir falar do assunto. A gente já teve reuniões que duraram horas só da gente chorando com casos de estupro e de violência. Tem meninas que descobrem que forem estupradas depois de seis anos porque a sociedade naturaliza tanto que elas não reconhecem —afirma Beatriz.

O coletivo Maria Bonita nasceu depois que uma aluna da FFLCH foi jogada da janela de um apartamento no quarto andar pelo namorado, que não é estudante da USP, e ficou em coma. Um grupo se reuniu para arrecadar fundos para a menina e decidiu criar o movimento.

Além dos casos das alunas da FMUSP que foram divulgados pela Alesp, outro que ganhou grande repercussão dentro da universidade, foi a tentativa de estupro de uma aluna de Geografia.

No início de março deste ano, a estudante começou a receber bilhetes anônimos, colocados em sua mochila no intervalo das aulas. “Eram elogios e declarações de uma admiração bizarra e constrangedora”, definiu a menina, que pediu para não ser identificada, em um relato na internet. Depois, os bilhetes que diziam coisas como “você ainda vai ser minha” começaram a aparecer no para-brisa de seu carro e até na mochila de um amigo. A estudante resolveu registrar um boletim de ocorrência.

Em agosto, estacionou o carro na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), desceu e procurou o celular nos bancos da frente. “Nesse momento fui surpreendida com um homem que veio pelas minhas costas me segurando pelo pescoço e forçando a entrada no carro. Sem que me deixasse ver seu rosto, porque me segurava com força e violência pela nuca, falou meu nome e em seguida ‘eu te avisei’, repetidamente. Ele me imobilizou e se deitou em cima de mim. Quando tentou abrir minha calça, consegui acionar a buzina do carro com meu joelho, alta e continuamente. O sujeito assustado bateu meu rosto com força na porta do passageiro, e fugiu correndo do carro, me impedindo de virar para tentar identificá-lo, uma vez que me recuperava da pancada. Foi feito um novo B.O, e exame de corpo de delito”, relata a vítima. O caso foi levado para direção da universidade. A assessoria não informou sobre o andamento da investigação.

— O agressor dela está aqui e ela não sabe quem é, então é assustador. Ela não tem segurança para vir para a aula, ela não consegue ficar aqui como uma pessoa normal e tomar uma cervejinha e depois ir para casa. Ela tem medo. Ela estava aqui em um dia normal, de dia, e tentaram estuprá-la e o cara estava na sala dela –— diz Letícia.

“Por não ter como identificar o agressor, convivo diariamente com o medo e a desconfiança de qualquer olhar mais demorado. Não ando mais sozinha. Não fico mais em paz, em qualquer lugar da universidade Não me concentro, mal consigo assistir às aulas com o mínimo de atenção”, relatou a menina na internet.

— A gente está de abraços abertos para receber essas meninas mas é como se a gente ficasse só apagando fogo. Isso é reflexo do total abandono em que as vitimas de violência dentro da USP se encontram. Não somos advogadas, psicólogas, assistentes sociais, nós tivemos que aprender muita coisa na prática. Levando para delegacia da mulher, por exemplo, percebemos a precariedade da polícia para atender esses casos, ficamos horas e horas com vitima lá — conta Letícia.

A integrante da Frente Feminista da USP conta que ainda não é possível estipular o número de casos de abuso e agressão contra mulheres dentro da universidade mas que os coletivos, em parceria com a Alesp e com o Ministério Público, estão trabalhando nisso.

— A gente não consegue fácil fechar um número, ouvimos muitas histórias e ninguém quer denunciar e por isso a reitoria não reconhece o problema. A gente vive isso cotidianamente, sabemos que é necessário um centro de referencia para um atendimento qualificado e uma ouvidoria. As meninas não denunciam porque não se sentem segura para isso. É desesperador, eu fico muito angustiada, elas acham que vão destruir a vida delas, elas acham que todo mundo vão culpá-las, o que é parte do processo de sofrer a violência. Você acha que ninguém vai te apoiar.

Como exemplo de impunidade e de falta de apoio da USP para o caso, Letícia afirma que o coletivo Geni, grupo feminista da FMUSP, encaminhou 13 denúncias de abuso sexual para a diretoria da faculdade e apenas dois foram reconhecidos.

As estudantes de Medicina e do coletivo Geni, que fizeram as primeiras denúncias de abuso, relataram em audiência na Assembleia que agora estão sendo ameaçadas e perseguidas por alunos dentro do campus e pelas redes sociais, inclusive nas comunidades Dignidade Médica e Pinheiros, que reúnem estudantes, profissionais e professores. Mesmo as vítimas que já prestaram depoimento na Alesp não querem dar entrevistas à imprensa. Uma das vítimas de estupro chegou a trancar o curso de Medicina após ameaças e ofensas.

— Isso desestimula as meninas a denunciarem. Além dos coletivos, as próprias vitimas acabam virando referencias e recebem denúncias. Antes não tínhamos necessidade de tabular isso, mas agora estamos trabalhando nisso. A gente tem feito debate, campanha na internet, cartazes e até por isso surgiu o Encontro das Mulheres da USP para organizarmos campanhas mas a universidade tinha que fazer algo institucional.

A Frente Feminista reivindica desde o ano passado que a reitoria faça uma campanha institucional sobre a violência contra mulher mas ainda não obteve retorno.

— São coisas simples, que eles fazem com outros assuntos como bituca de cigarro mas não fazem com as mulheres, como mandar e-mails institucionais, colocar cartazes pela faculdade e começar a trabalhar com isso desde a calourada, que é o início de tudo —afirma Beatriz.

RESTRIÇÕES E REIVINDICAÇÕES

O Conselho Gestor da Cidade Universitária da Universidade de São Paulo (USP) aprovou restrições às festas e a proibição à venda de bebidas alcoólicas dentro da instituição. Em documento, o conselho diz que “só serão autorizados eventos festivos que tenham compatibilidade com a vida universitária, em locais que comportem o público esperado, que não interfiram nas atividades essenciais à universidade e reúnam, majoritariamente, pessoas da comunidade USP”. A Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (SP) e a Faculdade de Medicina da USP na capital também já haviam proibido as festas e a venda de álcool.

Letícia diz que essas medidas não são suficientes e não atingem o problema.

— A Faculdade de Medicina e a reitoria estão tratando como se o problema da violência contra a mulher fosse necessariamente vinculado ao álcool e não é. Isso é uma falácia. A violência vem de vários lados, culpabilizar o álcool é dar uma saída que não atinge o problema, pelo contrário, deturpa o real motivo porque vai acabar com as festas dentro do campus e vai ter festa fora. Os casos de violência não são só em festaS, tem violência por parte de professor, por parte de trabalhador, de estranhos, de colegas, de moradores de rua que moram dentro do campus. São várias situações. Todo ano a reitoria quer acabar com as festas, não é uma resposta ao problema, é um bode expiatório.

As integrantes também questionam os discursos de diretores da USP de que o machismo é um problema da sociedade.

— A gente se organiza na faculdade porque nosso círculo social é aqui mas a violência acontece em todo lugar. O machismo é um problema estrutural, a gente sabe que é da sociedade, e então é obvio que vai se reproduzir aqui mas o que acontece aqui dentro tem que ser responsabilizado. Tem casos de assediada, abusada, aqui dentro por um aluno que não recebe nenhum tipo de punição, e é ela que tranca o curso — afirma Beatriz.

— De fato, a violência contra a mulher é uma realidade não só da sociedade brasileira, mas do mundo, e isso se reflete na universidade e não se pode encarar isso como natural e lavar as mãos. O que percebemos é que a faculdade está com resistência de elaborar politicas e fazer campanhas porque seria assumir que existem esses casos. Como se esses casos estivessem sujando o nome da USP, mas a denúncia nunca suja, o que suja o nome é a omissão, a negligência. Na Medicina, a represália que as meninas estão sofrendo por parte dos estudantes é um pouco disso. É tanta paixão pelo curso, que acham que você denunciar um problema que existe lá é manchar a instituição, como se a prática mais correta fosse deixar lá dentro mesmo, resolver entre os seus e não jogar para fora — diz Letícia.

A assessoria da USP informou que a Superintendência de Assistência Social da Universidade (SAS) desenvolve um projeto denominado SOS Mulher que tem atendido as denúncias. Desde 2011, foram registrados dois casos de violência contra e mulher.

“Quando as vítimas procuram o projeto SOS Mulher, da Divisão de Promoção Social da SAS, são orientadas a ir até a delegacia e registrar um Boletim de Ocorrência. Assistentes sociais e psicóloga as acompanham até a Delegacia da Mulher, e Hospital, além de oferecer suporte psicológico, médico e financeiro (se for o caso) para proteção e recuperação da vítima. São tomadas todas as providencias protocolares pertinentes em situações dessa natureza. A SAS só pode tomar as providências já descritas ou abrir sindicância se procurada pela vítima e/ou pela Unidade de Ensino a qual pertence”, diz nota da instituição.

Uma das reivindicações do Coletivo Geni, um centro de referência com ouvidoria formado por profissionais de fora da instituição, será atendida. A medida foi aprovada no mês passado pela congregação da FMUSP.

Atualmente, quatro casos – um de homofobia e três de abuso sexual – estão sendo investigados por sindicâncias abertas pela USP. O Ministério Público também está atuando e investiga, pelo menos, oito casos. A Promotoria de Direitos Humanos já ouviu 15 pessoas.

A USP diz ainda que mantém o serviço Disque Trote (que atende pelo número 0800-012-10-90) e a Ouvidoria, implantada há mais de dez anos. E que também desenvolve campanhas educativas durante a calourada e estimula o trote solidário.

A Pró-reitoria de Cultura e Extensão da USP fará um questionário online para mapear os casos de homofobia, racismo e machismo, incluindo violência sexual, na instituição. Os dados deverão ser divulgados em 2015, com a intenção de discutir políticas de prevenção e educação aos estudantes.

MUDANÇA DE HÁBITO

O que antes era velado e tomou conta de todos os jornais do país, agora começa a ganhar espaço dentro da universidade, além coletivos feministas. O Jornal do Campus, produzido pelos alunos de Jornalismo e distribuído por toda a instituição, deste mês traz uma entrevista com a professora de Antropologia e Gênero e coordenadora do programa USP Diversidade, Heloisa Buarque de Almeida.

Heloísa afirma que há um problema com a noção de consentimento, com o que é sexo exatamente. “Essa ideia de que se a menina está bêbada ou já deu bola antes, ‘ajoelhou, tem que rezar’. A sensação que eu tenho desses casos é que, antigamente eles também aconteciam, mas a menina se sentia culpada e não denunciava. Hoje elas percebem isso (…) É um problema de geração mesmo que vem por uma experiência geracional de como você classifica o que é sexo, o que é violência, o que é estupro”, afirma a professora na publicação.

Reflexo dessa mudança é o fim do “Eca Fashion Bixos”. O tradicional concurso de escolha de uma Miss Bixete do curso da Escola de Comunicação e Artes (ECA-USP) não será mais realizado a partido do ano que vem. A conquista é do Coletivo Feminista da ECA, que também surgiu após um caso de assédio durante a greve do ano passado.

— Um representante de uma equipe era escolhido para ser o menino e a menina mais bonito mas é claro que com a menina tinha uma objetificação maior. Ela tinha que rebolar para os jurados, os meninos faziam muitos comentários machistas. Fizemos uma intervenção contra na calourada do ano passado e esse ano, a comissão em decisão com os coletivos e com centro acadêmico decidiu por unanimidade não fazer mais o Miss Bixete e usar o horário para fazer uma atividade contra a opressão —afirma Giulia Confurtoto de Castro, aluna do terceiro ano das Artes Cênicas, 20 anos.

Confusos com a mudança de comportamento, os meninos têm procurado as integrantes dos coletivos da USP.

— Quando estávamos começando a organizar o Coletivo Maria Bonita, os meninos nos procuraram dizendo que queriam participar, queriam discutir. Nos cursos de Humanas, grande parte dos caras se dizem feministas, chega a ser engraçado porque eles escrevem sobre feminismo nas redes sociais, falam muito bem sobre, e são os mesmos caras que assediam as mulheres em festas e que, quando ninguém está olhando, são machistas. Nós decidimos que eles podem participar das atividades abertas mas as decisões políticas são as mulheres que tomam. Como é um problema da sociedade, é ótimo que eles queiram participar, é ótimo que eles entendam, porque o machismo não vai acabar se só as mulheres se preocuparem com esse tema, mas nossa decisão é que as mulheres decidem o que fazer, que são os sujeitos políticos que pensam em propostas. E nossa reuniões são só entre mulheres porque quem tem histórico de violência muitas vezes não se sente à vontade de falar na presença de homens – explica Beatriz.

A coordenadora do programa USP Diversidade ressalta, também, a necessidade de uma nova política da instituição.

“O que eu sinto é que é preciso criar uma política transformadora na Universidade e essa política não basta vir de cima para baixo. Ela deve contar com a participação dos alunos, porque os alunos já estão participando, visto o fato que na Universidade estão aumentando cada vez mais os coletivos feministas, os coletivos LGBT (…) A gente e a sociedade brasileira não quer mais aceitar algumas coisas como a piadinha machista em sala de aula. O professor tem uma posição de autoridade, ele não pode humilhar as alunas mulheres. Assim como ele não pode fazer algo contra os negros ou os gays”, afirmou a docente no Jornal do Campus.