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RIO — “A figura da Espanha tem a forma de uma Cruz. E lembra o Cristo que pintou Velázquez: o Redentor do Mundo e dos homens. Por isso, o destino da Espanha é cristão e universal. Porém, para cumprir este sublime Destino, a Espanha sempre precisou, imitando o divino Salvador, sofrer martírios, sacrifícios, sangue derramado, infinitas amarguras. E duras lutas.”

O manual España Nuestra, de Giménez Caballero, publicado em 1943, que introduzia a versão espanhola do fascismo no ensino do país, é um dos incontáveis atestados documentais da ambição das ditaduras de moldar a consciência política dos jovens desde os bancos escolares. No Brasil democrático de hoje, as provas do Enem refletem uma ambição similar. A escritura ideológica, patente ou subjacente, atravessa todos os anos as questões de ciências humanas, configurando um padrão facilmente reconhecível.

A propaganda explícita das políticas racialistas é uma marca do Enem. Na prova aplicada anteontem, emerge duas vezes. Por meio da questão 42 (Prova Branca), o jovem candidato é conduzido a aplaudir o Parecer do Conselho Nacional de Educação que instituiu a “Educação das Relações Étnico-Raciais”. A formulação da questão cita um trecho do documento oficial, consagrado a difundir “posturas que eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial” – ou seja, uma pedagogia do “orgulho racial”. Num outro trecho, não citado, o Parecer conclama as escolas a desfazer os “equívocos quanto a uma identidade humana universal”, o que equivale a rasgar a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Por meio da questão 37 (sempre da Prova Branca), sutilmente, o Enem traça um fio histórico entre as atuais políticas racialistas e antigas demandas políticas dos “negros”. A formulação cita um trecho do estatuto da Frente Negra Brasileira (FNB), fundada em 1931 e explica que a entidade foi “fechada pela ditadura do Estado Novo”. Em seguida, conduz o estudante a selecionar a única alternativa viável, que enfatiza o engajamento da FNB na “luta por direitos sociais para a população negra no Brasil”. Os examinadores oficiais operam por seleção e omissão, ocultando a proximidade doutrinária da FNB com os integralistas, também proibidos após o golpe do Estado Novo. O subtítulo do jornal da FNB era “Deus, pátria, raça e família”. Daria uma bela questão, num outro Enem, pautado pelas dificuldades da reflexão crítica, não pelas simplórias certezas do discurso ideológico.

O antiamericanismo é um traço obsessivo do Enem. Ele aflorou desta vez na questão 26, a mais panfletária de toda a prova. Segundo a formulação, o grupo dos BRICS é formado por “países que possuem características político-econômicas comuns”, uma tese ousada que deve ser compulsoriamente admitida pelos candidatos, chamados a “comprová-la” pela seleção da alternativa “correta”. A única alternativa coerente com a formulação cimenta a unidade do grupo na lenda de que seus integrantes constituem uma “frente de desalinhamento político aos polos dominantes do sistema-mundo”. Por esse caminho, o Enem sacrifica no altar da retórica de nossa política externa as profundas divergências geopolíticas entre os países dos BRICS, notadamente o alinhamento estratégico da Índia com os EUA.

(Nota aos candidatos: certamente aturdidos pela ideia de uma unidade antiamericana dos BRICS, os cursinhos preferiram marcar como certa a alternativa C, que não indica uma “característica político-econômica” do grupo e, portanto, não satisfaz logicamente a demanda da questão. Talvez o INEP desvie seu gabarito para o rumo indicado pelos cursinhos, destruindo a lógica para salvar a cara…).

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A imprensa é má; o governo é bom — eis uma ideia-força das provas do Enem. Na questão 23, o “presidente do jornal de maior circulação do país” justifica sua “adesão aos militares em 1964” em nome da “manutenção da democracia”. Na questão 24, a Comissão Nacional da Verdade surge como “iniciativa do Estado” que “resultou da ação de diversos movimentos sociais”. Os examinadores não mentem: giram os holofotes para iluminar as verdades parciais, habilidosamente selecionadas, que lhes interessam. A imprensa anda junto com os generais. O governo reflete a vontade dos movimentos sociais. As duas questões não falam, realmente, de 1964, mas de 2014. Não deveria ser “socialmente controlada” essa imprensa golpista?

O Brasil do Enem não é a Espanha de Giménez Caballero. No manual do fascista, uma figura de Cristo crucificado aparece sobreposta ao mapa da Espanha, com os braços estendidos da Galícia aos Pireneus e os pés encaixados em Gibraltar. Por aqui, o Enem contenta-se com esboços sugestivos e rascunhos sumários. Não “faz a cabeça” de ninguém, obviamente. Mas certamente contribui para a miséria intelectual em nossas escolas.