Samuel Lourenço Filho estuda Gestão Pública na universidade federal e sonha com pós em Direitos Humanos
“Eu não sei quanto você tem de tempo aí, porque a história é longa. Tá com disposição?”. Samuel Lourenço Filho tem 28 anos e história para dar e vender. No encontro que teve com o iG, para falar sobre o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), exame que lhe garantiu uma vaga na UFRJ, esmiuçou sua vida, cheia de altos e baixos. Tudo seria muito normal se não fosse um detalhe: Samuel é presidiário.
Hoje, ele se encontra no regime semi-aberto e sai todos os dias do Instituto Penal Cândido Mendes, no centro do Rio de Janeiro, para trabalhar de 7h às 13h no time da limpeza de uma empresa. De lá, pega um ônibus para a Ilha do Fundão, onde assiste aulas do curso até 20h. Volta para o Cândido Mendes, fica no estacionamento próximo ao local estudando até 22h20, quando guarda os livros, notebook e todos os pertences e entra para dormir.
“Eu me declaro como presidiário e não tenho problema com isso. Sou presidiário hoje e serei ex-presidiário amanhã. Eu não vou permitir que isso se apague, porque preciso ser exemplo para quem precisa lutar. Eu acreditei em todo mundo que lutou comigo e vi tudo ao redor dizer que não ia dar certo. As resistências foram muitas, mas vencemos”, disse ele.
Ponto de partida: 2007
Para entender a história, é preciso entender Samuel. Nascido em um ambiente rural em Campo Grande (RJ) e com três irmãos, ele conta que sempre teve muita disposição para estudar. Até a oitava série estudou em escolas públicas, quando decidiu colocar-se à prova e conseguiu uma vaga no ensino médio no colégio Liceu Literário Português, no centro do Rio.
Estudou até o segundo ano do Ensino Médio, quando teve a vida virada do avesso. A mãe faleceu de câncer e um novo Samuel nasceu. Foi para o Paraguai morar com uma tia que trabalhava com fazenda de soja. Após a morte de sua vó, decidiu voltar para o Rio. Só que a bebida já tinha um espaço largo no bolso e na vontade de Samuel.
“Eu estava vegetando. Trabalhava no Ceasa, recebia na sexta e no domingo já não tinha mais nada no bolso. E foi assim até que um amigo meu teve um problema extraconjugal. A amante dele engravidou e queria abrir a boca para a família dele”. O amigo começou a falar, então, que teria de matar a menina para dar um jeito na situação. “E eu falava ‘é isso mesmo, tem que matar’. Eu, num bar. Olha só como a vida de uma pessoa muda dentro de um bar”, lembrou.
A ameaça ganhou frequência. “Um dia, a gente saiu decidido. Foi à luz do dia, eu achando que era a coisa mais natural a ser feita. Saí com o maior gás do mundo e executei a menina. Foi com uma faca. O meu amigo ficou no carro e eu sai para fazer. Foi tudo muito rápido. Os policiais estavam passando na hora, me viram e tentaram atirar em mim, mas eu fugi. Até que, no meio de uma mata, eu me rendi”, contou.
De transferência em transferência, Samuel precisou esperar dois anos e meio para ouvir sua sentença. “No júri popular, ficou cinco a dois. Duas pessoas foram a favor de eu ser absolvido, mas perdi o júri. E na condenação, o juiz me deu 16 anos. Quando eu ouvi a sentença, falei ‘ufa’. Achava que eu ia pegar uns 30, 40 anos”, falou.
A virada
De passo em passo, Samuel foi reencontrando amigos da época do Ceasa e, tornou-se cada vez mais próximo do grupo de presos religiosos, ficou conhecido como pastor. Uma vez com a sentença fixada, ele seguiu para o Presídio Evaristo de Moraes, em São Cristóvão, onde ia reencontrar na educação o lugar para testar suas capacidades. Samuel começou a frequentar a escola do presídio e concluiu, durante 2010, o Ensino Médio.
Em 2011, estava tudo certo para fazer vestibular. A primeira etapa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) aconteceria em abril e a segunda, em agosto. “Tenho um amigo que administrava a biblioteca, e ele me emprestava livros para estudar”, disse. Samuel fez inscrição do Enem e também passou no exame discursivo da UERJ. Seu objetivo era a Pedagogia.
O resultado só sairia em janeiro. “No dia 16, fui chamado no gabinete do diretor. Quando entrei, ele estava atrás da mesa, de pé, o subdiretor posicionado na minha direita, e eu no centro da sala. Daí o diretor falou: ‘Você sabe por que eu te chamei aqui? Você está há quanto tempo na minha cadeia?’. Essas falas são as que antecedem o esculacho. Eu já estava esperando a porrada. Até que ele me deu os parabéns e me avisou que fui aprovado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro”, relembrou.
“No dia 19, o diretor me chama de novo e avisa que eu também tinha passado para a estadual”, completou. Junto com a irmã, ele optou em se matricular na UERJ, seu sonho antigo. O problema é que o regime de Samuel ainda era fechado. O diretor, então, começou a tomar a dianteira da situação e, junto com o aluno e os defensores públicos, lutou por um semi-aberto. O problema é que a luta travou aí.
Junho, julho, agosto, setembro, novembro… Nada. “Em dezembro, fiz o Enem e o exame da UERJ de novo, porque eu tinha sempre que tentar. Só que nesse ponto já não tem mais glória, só tem cansaço. A minha primeira matrícula já tinha vencido, mas eu fui aprovado de novo no novo exame.” Quando o juiz liberou o semi-aberto, Samuel conta que foi transferido para o Instituto Penal Cândido Mendes.
O medo da rua
Uma vez vencida a luta contra o vestibular (essa foi fácil) e o sistema, era hora de encarar sua nova realidade: “Eu estava com medo das pessoas, da aceitação, do relacionamento, de tudo isso. Se eu tivesse a opção de estudar isolado, eu ia querer estudar isolado. Mas fui, numa quarta-feira. Foi a primeira vez que sai na rua, vi gente, barulho, minha liberdade. Eu estava muito assustado com tanto carro. Achava que todo mundo que estava andando queria me matar, que todo mundo sabia que eu era preso… Começam umas neuras bem pesadas”.
Comunicativo, Samuel já tinha contado da sua situação de detento para um aluno e pediu ajuda na articulação. O choque foi quando a turma, de uma vez, ficou sabendo da novidade. “Um dia, a professora falou alguma coisa para abrir no Facebook. Eu disse que não tinha Facebook. ‘Então, Youtube’. Eu disse que não, não mexia com Youtube. ‘DVD?’. Disse que nem DVD. ‘Então e-mail?’. Avisei que não tinha email, computador, nada. E ela perguntou de onde eu era. Eu, então, falei para a sala: ‘professora, eu sou preso. Tenho autorização da justiça para estudar e voltar para cadeia’. Ela não reagiu mal, disse que ia arrumar uma forma para me passar o trabalho. Mas ficou aquele silêncio dentro da sala”, lembrou.
Aos poucos, ainda no primeiro período, acabou a neura. Ele começou a se enturmar, a ter liberdade para falar da sua condição, a dar exemplo com isso. Mas veio a dificuldade do mercado de trabalho em pedagogia. “Para homem é tudo mais difícil na área. Eu comecei a me assustar”, disse.
“Qual é o pai que deixa o filho ser aluno de um professor que é bandido? Não tem conversa, que é ex-presidiário ou sei lá. É bandido. Não vamos medir termos. Nem eu botaria meu filho para estudar com vagabundo. Comecei a achar que tinha entrado de gaiato nesse campo”, falou.
Depois de um ano e meio, aproximadamente, de UERJ, Samuel prestou Enem novamente.
O sonho da federal
“Como minhas notas foram altas no Enem, ‘agora eu vou caçar mercado’, pensei. Foi quando vi Gestão Pública na UFRJ. Acabei entrando na segunda chamada do curso. Aí parei com tudo e comecei a pensar. A administração pública estava muito fechada. A gestão pública, ao menos, vai me levar para o terceiro setor e eu vou chegar bem. Ao invés de ser o pedagogo que depende do gestor para coordenar a ONG, eu vou ser o gestor. Daí decidi. Larguei a UERJ e mudei”, afirmou.
O caminho, agora, é outro. É lápis e papel na mão para reescrever uma nova história. “Dentro da prisão eu vi a eficácia da educação. A cadeia te faz bandido, você vira um marginal. E o espaço escolar desconstrói isso. Te dá uma nova identidade. Eu saia da cela todos os dias para estudar, estava dentro da cadeia, mas não me sentia mais preso. Eu me senti livre, me senti bem. Olha o que a educação fez com a minha vida. A prisão se tornou um detalhe. Ela acaba com minha vida, porque ninguém quer saber do que acontecer antes de 2007, mas olha onde eu estou hoje. Eu estou numa universidade federal, no meio de um monte de gente”, falou, orgulhoso.
E os sonhos vão além: “Com um ano de faculdade estou com três congressos. A educação me credibiliza como pessoa. O que eu pretendo, hoje, é a formação na gestão pública. Eu já tenho parte do Luz da Liberdade, que é uma associação que atende egressos, e penso em trabalhar no terceiro setor, principalmente na questão da vulnerabilidade social. Agora, estou vendo a pós-graduação em Direitos Humanos como algo fantástico. Ainda é uma decisão a ser tomada para frente. Enfim, vou me organizar… E estou fazendo Enem de novo. Pretendo pegar uma notinha legal para fazer o Prouni e terminar pedagogia a distância, porque quero terminar”.
Neste ano, o Enem será aplicado para presidiários de todo o País nos dias 9 e 10 de dezembro em unidades prisionais.
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