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As estudantes que criam grupos feministas para se proteger do machismo e de agressões sexuais na universidade

JÚLIA KORTE E ISABELLA CARRERA

O GRUPO GENIS
1. Nina Alves 2. Gabriela Bertti 3. Eliza de Oliveira 4. Marina Barbosa 5. Daianne Cassiano6. Daiany Pressato 7. Cristiane Morri 8. Juliana Sartori (Foto: Filipe Redondo/ÉPOCA)
Dentro do campus da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no bairro de Perdizes, há uma agradável pracinha com bancos de madeira e mesas de concreto. Apelidado entre os alunos de bosque, o lugar serve de ponto de encontro, numa tarde de sexta-feira, para uma rodinha de alunas que discutem e gesticulam enquanto uma delas toma nota num caderninho. As mochilas e bolsas de pano ficam no chão. O que as empolga tanto? Falam de vários assuntos, até na abertura da Copa do Mundo, no dia anterior. “Mulher não enfeita estádio: ela assiste e torce pelo seu time, como os homens.” Essa é a conclusão que tiram sobre a presença feminina nos campos de futebol, segundo elas, ainda percebida apenas como um bônus estético pelos homens. Na reunião, no período de férias, há apenas cinco moças. Durante as aulas, o Coletivo Yabá (palavra do idioma africano iorubá que quer dizer mulher guerreira) reúne umas 30 alunas por reunião.

Reuniões de mulheres como essa se tornaram comuns nas universidades brasileiras. Em várias delas, as estudantes se organizam em grupos feministas com um objetivo central: evitar que as alunas sejam vítimas do machismo e da violência sexual no ambiente universitário, onde se multiplicam denúncias de trotes degradantes, agressões verbais contra as mulheres e até estupros. ÉPOCA conversou com alunas de 13 universidades brasileiras públicas e privadas onde há grupos feministas. Em todas elas, ouviu relatos de violência sexual contra alunas. Como as autoridades universitárias não atuam para deter esse tipo de comportamento, as estudantes optaram pela auto-organização. “A violência sexual é um tabu que as universidades têm vergonha de discutir. Elas precisam assumir sua responsabilidade”, afirma Miriam Abramovay, coordenadora da área de Juventude e Políticas Públicas da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, de São Paulo. Quando procuradas por ÉPOCA, a maioria das universidades não quis opinar sobre o problema ou negou a ocorrência de agressões.

O pior cenário existe. Em 11 de maio de 2013, durante a festa de recepção aos calouros da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), uma aluna foi violentada ao sair da festa para urinar atrás de um carro, no estacionamento. Antes do crime, registrado por boletim de ocorrência na 18a Delegacia Policial do Rio, ela disse ter ouvido uma única frase de seus agressores: “Agora você vai aprender a gostar de homem”. As meninas do Coletivo de Mulheres da Uerj acompanharam a vítima para prestar depoimento e encaminharam o boletim de ocorrência à reitoria. O caso continua na Justiça, e a universidade diz que espera a conclusão do inquérito antes de agir contra o acusado.

“As meninas falam da violência e denunciam. Isso é importante”, diz Heloisa Buarque de Almeida, professora de antropologia da Universidade de São Paulo (USP), vice-diretora da pós-graduação e coordenadora do projeto USP Diversidade. Ela diz que haverá um levantamento oficial em todos os campi da USP para mapear os casos de violência contra a mulher, homofobia e discriminação racial. “Essa decisão surgiu a partir dos relatos de violência”, diz ela.

Na trilha de Simone

O Genis surgiu em 2013, na Unesp de Botucatu, como forma de defesacontra a discriminação sexual. Nas reuniões semanais, com cerca de 20 alunas, são comuns citações da escritora francesa Simone de Beauvoir, uma das fundadoras do feminismo. Ganharam notoriedade no campus ao receber denúncias de trotes humilhantes e casos de estupro.


O GRUPO DE MULHERES
1. Pilar Borges 2. Lorena Lira 3. Maria Ribeiro 4. Rachel Milito 5. Eduarda Ferreira 6. Isabela Cruz 7. Lígia Maria 8. Paola Fernandes 9. Jéssica Nunes (Foto: Stefano Martini/ÉPOCA)

Os grupos feministas das universidades brasileiras não têm inspiração ideológica definida. Não fazem parte de um movimento internacional nem imitam alguma forma de organização estrangeiras. O primeiro deles, o Yabá, da PUC de São Paulo, foi criado em 2010 como medida prática para organizar a indignação feminina. Outros imitaram seu modelo. No ano passado, com o surgimento na internet de campanhas em defesa das mulheres, como “Eu não mereço ser estuprada” e “Chega de fiu fiu”, a ideia de criar grupos feministas por escolas se difundiu. O Histéricas, da Faculdade de Economia e Administração da USP, é dessa época. Nasceu no início de 2014, quando uma de suas integrantes foi hostilizada no Facebook por criticar um comentário da Torcida Organizada da faculdade publicado no Dia da Mulher. O texto dizia: “A Tofu parabeniza todas as mulheres, até as baranguinhas da GV, as maconheiras da PUC, as p… da ESPM e as burras do Mackenzie”.

“As alunas precisam saber que serão defendidas e encontrarão entre nós um ambiente receptivo caso algo ruim aconteça”, afirma Vanessa Fogaça, de 25 anos, do Coletivo Feminista Iara, da Universidade Federal do Paraná, em Curitiba. As “coisas ruins” a que ela se refere costumam acontecer frequentemente, em todo o país, sobretudo nas festas de calouros. Na primeira semana de abril de 2014, de acordo com o Genis, entrevistado por ÉPOCA, quatro calouras da Universidade Estadual Paulista, a Unesp, foram estupradas em Botucatu durante a recepção aos calouros. Segundo o relato do Genis, elas foram alcoolizadas até perder a consciência, acordaram com dores e sangramento vaginal. Ao saber do fato, o grupo feminista procurou as alunas. A única que, segundo o Genis, aceitou conversar se recusou a prestar queixa na polícia ou a denunciar os agressores à universidade, apesar de lembrar-se de um deles.

A professora Marilza Vieira Cunha Rudge, vice-reitora da Unesp e autora de um manifesto contra a violência sexual, relata a dificuldade em agir contras os estupradores dentro da universidade. Há poucos meses, Marilza conta que deparou no jornal com um caso de estupro dentro docampus. Ela procurou os grupos que apoiavam a menina e chegou a participar de um encontro. “O fato era real, e isso ficava claro pelas testemunhas”, afirma. Quando ouviu da própria aluna o que ocorrera, a jovem insistia em manter o anonimato. Isso não bastava para provocar medidas disciplinares ou permitir acusações formais na Justiça. Marilza tem o nome do acusado, sabe que ele é um aluno da faculdade de medicina, mas sem um testemunho formal não pode nem relatar o caso ao Conselho Regional de Medicina.

Solidariedade com as agredidas

O Mulheres Unirio começou em 2011 com meninas que viajaram para um congresso de Direito e descobriram ser espiadas durante o banho. Promoveram um debate, e, desde então, as cerca de 20 participantes fazem reuniões mensais, promovem debates sobre filmes e colam cartazes. O grupo se oferece para acompanhar as vítimas de agressão sexual à delegacia.

 

O GRUPO IARA
1. Débora Pradella
2. Vanessa Fogaça Prateano
3. Maria Eduarda Skroski
4. Adriana Motter
5. Priscila Villani
(Foto: Guilherme Pupo/ÉPOCA)

Existem várias explicações para o comportamento sexual violento contra as meninas na universidade. Uma delas é a impunidade. O ambiente escolar e a origem social dos alunos favorecem a desatenção das autoridades. Outro motivo é a hierarquia criada entre veteranos e calouros, que coloca as garotas em situação vulnerável. “Na primeira semana, os abusos são mais comuns. É quando as calouras ainda não têm familiaridade com o ambiente a sua volta e estão em situação vulnerável”, diz Larissa Avelino, do grupo de mulheres que reúne alunas da USP e da Universidade Federal de São Carlos. Há também a circunstância geográfica. Muitas meninas estão longe de casa pela primeira vez e ainda não sabem direito como agir ou se proteger. O clima de experimentação pessoal ajuda. Todos são muito jovens, e muitos tendem a testar seus limites em situações de risco. Por fim, há o álcool e as drogas, consumidos nos centros universitários.

Uma pesquisa divulgada em maio deste ano pela Universidade Federal de São Paulo sugere que aqueles que bebem têm maior probabilidade de praticar agressões físicas. O abuso de álcool também aumenta o risco das mulheres  de sofrer ataques e amplia em 3,6 vezes a possibilidade de estupro. Num ambiente regado de excessos, como as festas universitárias e trotes, a combinação de juventude, vulnerabilidade e drogas pode ser devastadora.

A violência sexual nas universidades não acontece só no Brasil. Nos Estados Unidos, onde há pesquisas específicas sobre o assunto, uma em cada 5 estudantes relata já ter sido vítima de tentativa ou de agressão sexual consumada. O assunto é tão sério que Joe Biden, o vice-presidente americano, liderou um evento de alerta na Casa Branca. As autoridades brasileiras também deveriam se voltar para o assunto, tanto na academia quanto nos governos. É inspirador o esforço dos grupos de mulheres que se organizam para se proteger do machismo e das agressões sexuais. Mas a tarefa, claramente, é maior do que elas. Identificar e prender criminosos desse tipo é trabalho da polícia. Julgá-los é tarefa da Justiça. Se eles estão nas universidades ou nas ruas, não faz diferença.

Contra as músicas ofensivas
O Iara foi criado por alunas do curso de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 2013. Hoje, cerca de 30 meninas participam. Há conversas com as turmas, palestras e reuniões quinzenais. O grupo convenceu a bateria da faculdade a parar de cantar músicas que insultavam as mulheres.