O comediante diz que ter bons colégios em áreas pobres é a melhor forma de fazer os negros ascenderem na sociedade e fala do humor feito atualmente.
Helio de la Peña, 54 anos, carrega o subúrbio do Rio de Janeiro, onde nasceu, no nome artístico. Batizado Helio Antônio do Couto Filho, acrescentou a homenagem à Vila da Penha, bairro onde foi criado, ao se tornar comediante. Fanático por futebol e torcedor do Botafogo, o ex-Casseta falou com ISTOÉ sobre suas expectativas para a Copa e sobre a reação contra o racismo do lateral-direito do Barcelona, Daniel Alves. “Ao engolir a banana, ele engoliu o racista”, afirma o humorista, que conta ter sido vítima de preconceito antes de ser famoso. Depois de quase 20 anos ao lado dos sócios e amigos do “Casseta & Planeta” (1994-2012) fazendo graça em esquetes sobre o cotidiano do brasileiro, ele se prepara para dar vida a um só personagem: Edmúcio, traficante de “A Segunda Dama”, seriado que estreia na Rede Globo esta semana. Casado com a fotógrafa Ana Quintela, pai de dois filhos, Peña também escreve um livro sobre relacionamentos que deve ser lançado este ano, compõe sambas e dedica-se à natação. Ele nada cinco vezes por semana – dois dias na piscina e três no mar – e integra uma equipe que participa de travessias marítimas.
Acha que a campanha #somostodosmacacos, lançada nas redes sociais logo depois que o jogador Daniel Alves comeu a banana em campo, terá efeito a longo prazo?
Antes dessa confusão toda, o Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas (Cufa), já tinha lançado uma campanha parecida. O que acho mais interessante é essa discussão estar em pauta. Hoje há espaço para expor a indignação. O oportunista sempre vai arrumar uma maneira de se aproveitar da situação, mas isso não diminui a força da campanha.
O Brasil ainda é um país muito racista?
O negro ainda é discriminado no Brasil. Quando eu era um negro qualquer, fui parado pela polícia, revistado e coloquei a mão na parede inúmeras vezes. Recentemente passei por uma situação curiosa. Fui com meu pai visitar uma amiga dele em um prédio na zona sul do Rio e o porteiro não me reconheceu. Quando nos mandou subir, ele nos encaminhou para o elevador de serviço. Perguntei por que teríamos que ir por ali e ele ficou dando desculpas. Fiquei com pena da ignorância dele.
Houve outras situações como essa depois da fama?
Levei meu filho ao hospital e, quando fui terminar de preencher a ficha para ele, o atendente disse que eu havia cometido um engano, pois tinha escrito que meu filho era negro. Confirmei que ele era negro sim, mas como se tratava de alguém famoso, o atendente trocou para “moreno”. Ele achou que, devido ao meu status, era melhor colocar que meu filho era menos negro.
Você era discriminado na escola?
Estudei no Colégio São Bento (instituição tradicional só para meninos no Rio de Janeiro) e nunca sofri nenhuma atitude racista, mas havia um constrangimento em ser o único negro, um dos poucos pobres e um dos raros suburbanos. Como vivi em ambientes elitizados, sempre fui confrontado por esse desconforto de quando um Brasil se encontra com outro. Brincava dizendo que me sentia o Mogli, o menino preto.
Hoje, um menino negro estudando em uma escola tradicional ainda se sente como Mogli?
Em alguns ambientes isso mudou, em outros não. A relação de cor e renda permanece muito parecida. Quanto mais você sobe na favela, mais negros existem. São poucos os negros com uma boa renda que não sejam artistas, músicos ou jogadores de futebol. Quantos negros são generais? Quantos são diplomatas? Ainda é muito pouco.
O que acha da política de cotas?
As cotas são uma resposta imediata, porém insatisfatória. Acho que traria mais resultado ter um colégio de alto nível dentro da favela, para aumentar a chance de formar negros e mestiços com condições de competir de igual para igual na sociedade. Preferia que eles tivessem condição de passar no vestibular da maneira que ele é.
A atriz Lupita Nyong’o foi eleita a mulher mais bonita do mundo pela revista americana “People”. Achou justo?
Sinceramente, achei um exagero escolher a Lupita Nyong’o. Quando tentam forçar essa discussão, reforça-se o preconceito de um lado ou de outro. A revista coloca você contra a parede: se você não achar ela a mais bonita é racismo?
Uma das bandeiras da Fifa para a Copa do Mundo no Brasil é a luta contra o racismo em campo. Isso é possível?
Acredito que atitudes racistas serão mais denunciadas e, portanto, devem acontecer menos. Mesmo porque o racismo no Brasil não se manifesta nos estádios de futebol como na Europa. Até por causa disso estranhei mais a situação do Tinga (jogador do Cruzeiro que foi ofendido por torcedores do time peruano Real Garcilaso, em fevereiro, em partida pela Libertadores). do que a do Daniel Alves. O Peru é um país cheio de negros e índios. Foi muita baixaria.
Acredita que as promessas para a Copa serão cumpridas?
Acho que vamos pagar muitos micos, especialmente na área de telecomunicações e aeroportos. Nunca consegui postar uma foto na mesma hora dentro de um estádio brasileiro. Mas sou do time que quer ter Copa e que quer ganhar, mesmo que isso venha a favorecer eleitoralmente alguém.
O que acha dos estádios construídos para o Mundial?
A gente já i maginava que teria algum tipo de roubalheira e superfaturamento, só não imaginava que chegaria a esse ponto. Não tinha necessidade de fazer megaestádios em lugares sem grandes times de futebol, como em Cuiabá. Como vão ocupar isso? No de Brasília devem fazer um campeonato de propina.
Quem viu o “Casseta & Planeta” no ar imagina com quais situações o grupo estaria fazendo graça. Qual cena gostaria de fazer em um ano como esse?
Gostaria de ver a presidenta Dilma Rousseff treinando a Seleção com o Luiz Felipe Scolari na Granja Comary. Acho que a maior vontade dela é fazer parte disso, fazer preleção para os jogadores…
O “Casseta & Planeta” acabou de vez?
O “Casseta” não vai voltar. Ainda somos sócios, mas o grupo tomou rumos diferentes. Uma coisa é você, sozinho, se reinventar. Outra coisa é reinventar um grupo depois de 20 anos.
Qual é o futuro do humor brasileiro?
A tendência é ter de tudo um pouco, porque tem gente que faz bem personagem, outros fazem stand-up, paródia ou improviso. Antigamente você só conseguiria produzir e divulgar humor se estivesse empregado em um jornal ou emissora. Essa geração agora trabalha a coisa mais crua, fundo de quintal. Por outro lado, tem muita coisa sendo produzida. É fácil fazer um vídeo ruim. Fazer um de qualidade é muito mais complicado.
É mais difícil fazer humor com a ditadura do politicamente correto?
O humor era muito unilateral. Se alguém se sentisse ofendido, o máximo que podia fazer era mandar uma carta. Hoje há liberdade para falar e responder. O que não consigo entender é por que quem faz algo para chocar se incomoda com a reação dos impactados. Até porque, quando a piada é bem-feita, o efeito da reação é menor. O exemplo disso é a websérie do Porta dos Fundos sobre Aids. Por que os aidéticos não falam mal? Porque é divertido, mas não escarnece do doente.
O que acha dos bad boys do humor, como Rafinha Bastos e Danilo Gentili?
Tanto o Rafinha quanto o Gentili são figuras que têm um público enorme. Tem gente que gosta de fazer e tem gente que gosta de consumir esse tipo de humor. Não é o meu caso, nem um nem outro.
O ex-Casseta Claudio Manoel disse que vocês não tinham liberdade para parodiar propagandas e emissoras concorrentes, como o seriado “Tá no Ar”. Isso é verdade?
De fato, nas últimas temporadas do “Casseta”, a gente gostaria de ter esse espaço e não podíamos fazer isso. Mas esse programa é engraçado, acho que segue a mesma linha do nosso e do “TV Pirata” (1988-1990).
No seriado “A Segunda Dama”, seu personagem, Edmúcio, é chefe do tráfico do morro local e negro. Acredita que isso reforça estereótipos?
Ele é um bom personagem, não pensei “mais uma vez escolheram um negro para fazer papel de traficante”. Se o Edmúcio fosse um loiro iriam falar que o Brasil não era assim. Na verdade, somos um país de mestiços. Se você for em Bangu 1, a maior parte de presos é de mestiços, esse que é o estereótipo.
Algum traficante serviu de inspiração?
Os poderosos do crime de hoje gostam de andar na moda e não ficam superarmados, para isso servem os capangas. Sempre que uma figura é presa, vemos nos jornais seus sinais de riqueza. Sempre observei isso, por curiosidade. Não tenho contato nem amizade com ninguém do tráfico, mas é inevitável ver essas figuras no Rio.
Como avalia a política de pacificação do Rio de Janeiro?
Espero que não seja uma medida de governo, e sim uma política de Estado. Houve um avanço porque essas comunidades, hoje pacificadas, eram completamente dominadas pelo tráfico. Mas só uma ação policial não vai resolver a violência no Rio. Faltam outros aparelhos do Estado, como hospitais, escolas e material humano. Além disso, esses maus policiais prestam um grande serviço contra o processo de pacificação.
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