Os candidatos de escola pública que se declaram negros, pardos ou indígenas e que foram aprovados na edição do primeiro semestre do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) neste ano tiveram nota de corte menor que os cotistas da rede pública sem distinção de cor em 90% dos cursos.
O G1 obteve com exclusividade os dados do Ministério da Educação via Lei de Acesso à Informação, e publica, desde quarta-feira (19)e até sexta (21), uma série de reportagens sobre o desempenho de cotistas no Sisu 2014. Entre elas, a série aborda as maiores diferenças entre notas de corte e os cursos mais disputados do país.
Segundo o Sisu, a nota de corte é calculada para cada curso “com base no número de vagas disponíveis e no total dos candidatos inscritos naquele curso, por modalidade de concorrência”. Ou seja, um mesmo curso terá nota de corte diferente para candidatos segundo a ampla concorrência (onde não há reserva de vagas) e segundo as diferentes cotas.
A lei federal prevê quatro tipos de cotas: alunos de escola pública; para alunos de escola pública que tenham renda familiar de até 1,5 salário mínimo; para alunos de escola pública que se declarem negros, pardos ou indígenas; e para alunos de escola pública que tenham renda familiar de até 1,5 salário mínimo e também se declarem negros, pardos ou índios (Veja como funciona o sistema de cotas).
O recorte comparou alunos na mesma situação: todos são oriundos da rede pública e, portanto, se beneficiam de pelo menos uma modalidade de cota contemplada pelo curso específico.
Em apenas 321 dos 3.329 cursos analisados (ou 10% do total), todos os negros, pardos e índios aprovados na primeira chamada tiveram uma nota mínima suficiente para passar na seleção mesmo concorrendo às vagas reservadas para qualquer aluno de escola pública, sem distinção racial.
Segundo o professor João Feres Júnior, Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), os números mostram que, além da cota social (para alunos da rede pública ou de baixa renda), “há necessidade de uma cota racial” no país.
Feres explica que a alta incidência de notas de corte menores entre cotistas raciais faz com que a cor da pele dos candidatos acabe sendo um fator relevante na aprovação ou não desses estudantes. “A nota de corte das pessoas que não são negras, pardas ou indígenas é mais alta em 90% dos casos. Se a variável étnico-racial fosse irrelevante, a nota de corte seria parecida com a dos outros”, explica ele ao G1.
“Há outros fatores que influenciam o rendimento dessas pessoas que não a escola. Caso contrário, a nota de corte seria outra. Eles [alunos negros, pardos e indígenas] sofrem outros tipos de discriminação.”
Nesse recorte, o curso que registra a maior diferença entre os cotistas de rede pública negros e não negros é o de engenharia mecânica na Universidade Federal do Piauí (UFPI). Nele, a nota de corte dos alunos de escola pública não inscritos pela cota racial foi de 766,76 na primeira chamada –142,22 pontos acima da nota de corte dos alunos de escola pública autodeclarados negros, pardos ou indígenas (624,54).
Cota racial x cota social
A situação se repetiu também em outra comparação de cotistas da rede pública. Contrastando as notas de corte de autodeclarados negros, pardos e indígenas com as notas de cortes dos cotistas que não entraram na cota racial, mas sim na de alunos de baixa renda, os números mostram que esses últimos também tiveram nota mais alta em 2.094 de 3.447 cursos analisados, ou 61% do total.
Se for acrescentado o viés da renda baixa, os números revelam que, entre todos os alunos de escola pública provenientes de famílias com renda per capita de até 1,5 salário mínimo, os candidatos que se declaram negros, pardos ou indígenas tiveram nota mínima de aprovação abaixo dos não negros em 82% dos cursos verificados.
“Quando você fala na questão racial, você transcende o viés socioeconômico. Nas instituições de ensino, sejam públicas ou privadas, existe desvantagem para o estudante negro”, afirma Nelson Fernando Inocêncio da Silva, coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab) da Universidade de Brasília (UnB).
Segundo ele, o currículo no qual o ensino está baseado atualmente é eurocêntrico. “Hoje as pessoas vão para a escola para aprender como europeus e brancos foram capazes de criar, e como outros segmentos sociais ficaram como coadjuvantes nessa história, como se não fossem capazes de produzir saber.” Para Inocêncio, não se pode “dissociar o desempenho escolar da autoestima”.
Outro fator que também pode influenciar a nota e a concorrência de cada modalidade de cota é a escolaridade dos pais. Na UnB, de acordo com o professor do Neab, os questionários socioeconômicos respondidos pelos candidatos ingressantes na instituição mostram que os pais dos calouros não negros são mais escolarizados que os pais dos negros.
“Entre os meus alunos negros que se graduaram, mesmo nos cursos de baixa demanda, muitos dizem que são a primeira pessoa da família a concluir a graduação”, diz Inocêncio.
A lei federal de cotas que entrou em vigor em 2012 prevê que, até o início de 2016, 50% de todas as vagas de instituições federais de ensino superior sejam reservadas para alunos da rede pública.
Dentro desse grupo de vagas, metade se refere à cota para alunos com renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo e uma porcentagem será distribuída entre os estudantes que se declarem negros, pardos ou indígenas. Essa porcentagem é diferente em cada estado, porque deve ser equivalente à população negra, parda e indígena indicada no Censo mais recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
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