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Estudantes vêm de famílias de classe média alta e se declaram contra projeto socialista de Chávez.

Bolas de golfe servem de munição quando acabam as pedras para armar estilingues. Nos capacetes de proteção, micro-câmeras de alta definição registram as ações dos adversários. Motos de alta cilindrada facilitam a rápida locomoção entre os focos de protestos. Telefones inteligentes transmitem ao vivo o confronto com policiais. Walkie-talkies virtuais acompanham e coordenam declarações políticas. Todos esse aparato faz parte do ‘arsenal’ utilizado pelo movimento estudantil que tomou as ruas de Caracas para exigir a renúncia do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro.

Os jovens venezuelanos que estão nas ruas há mais de três semanas não diferem de seus pares latino-americanos somente pelos recursos utilizados em suas manifestações. A maioria vem de famílias de classe média alta e aposentou a camiseta do guerrilheiro Ernesto Che Guevara, ‘uniforme tradicional’ em manifestações.

‘Estamos brigando contra o socialismo, certamente’, diz à BBC Brasil a estudante universitária Emily Vera, membro do movimento JAVU (Juventude Ativa Venezuela Unida), um grupo estudantil alinhado à direita radical.

Entre as técnicas de protestos utilizadas pela JAVU está a greve de fome. Emily conta que permaneceu 25 dias sem comer, junto a outros colegas, para exigir a libertação de supostos presos políticos, acusados pelo Ministério Público de assassinatos. A medida de pressão não foi atendida pelo então presidente Hugo Chávez, morto em março de 2013.

Polarização
Na Venezuela polarizada que defende de um lado uma ‘revolução socialista’ e de outro a ‘erradicação do castro-comunismo’, nenhum grupo admite estar à direita do tabuleiro político, ainda que suas ações contrariem essas afirmações.

Emily diz estar nas ruas em busca de um modelo híbrido de sociedade, que mantenha a ‘igualdade’ defendida pelos socialistas, respeitando, no entanto, a liberdade de mercado e consumo.

‘Temos direito a consumir e ter o que queremos sem sermos acusados pelo governo de ser burgueses’, critica a estudante.

De acordo com especialistas ouvidos pela BBC Brasil, o perfil conservador que caracteriza os jovens que protestam contra o governo reflete um processo de ‘direitização’ do ensino universitário na Venezuela – que se aprofundou a partir dos anos 90.

Acompanhando a onda neoliberal que predominava na região, as universidades, principalmente as privadas, passaram a privilegiar em seus currículos a preparação para o mercado de trabalho, em detrimento das ciências humanas.

Mais universitários
De acordo com um estudo da Universidade de Los Andes (ULA), a educação privada cresceu 115% entre 1990 a 1998. A tendência foi acompanhada por uma migração de 28% da população universitária do setor público para o setor privado.

Quando Hugo Chávez chegou ao poder, em 1998, menos de 500 mil estudantes tinham acesso à universidade pública. Em 2013, o número de matrículas chegou a 2,6 milhões de inscritos.

Assim como ocorre no Brasil, a maioria das vagas nas universidades públicas é ocupada por alunos provenientes de escolas privadas, que chegam melhor preparados para o vestibular que os estudantes da rede pública.

Para reverter a tendência, o governo Chávez criou um sistema educacional paralelo com vistas a incluir – sem exigência do vestibular – jovens de baixa renda provenientes de escolas públicas.

O sistema universitário Missão Sucre mantém, atualmente, quase 500 mil estudantes – em sua maioria, provenientes das classes populares.

‘Esses estudantes estão vinculados ao governo pela oportunidade de formação que tiveram’, afirmou a historiadora Margarita López Maya.

Nas outras universidades públicas tradicionais, no entanto, ainda é necessário prestar exame para competir a uma vaga. A manutenção do vestibular representa uma das derrotas amargadas pelo chavismo no campo da educação.

Não ao comunismo
O veto à controvertida reforma universitária em 2010 , que incluia o fim do vestibular e a inclusão de disciplinas marxistas no currículo- é uma das vitórias que Emily Vera considera ter conquistado contra o governo chavista.

‘A reforma implementava que deveríamos também ter matérias sobre comunismo e socialismo, assim como aconteceu em Cuba e estávamos contra isso’, afirmou.

Emily conta que ela e seus colegas, entre eles o fundador do JAVU, Júlio César Rivas, procuraram ajuda e orientações da blogueira cubana anti-castrita Yoani Sánchez.

‘Tivemos uma conversa com Yoani Sanchéz e ela nos disse que assim foi como começou o comunismo dentro das universidades em Cuba’.

O vínculo entre Rivas e Sanchéz seria referendado mais tarde, quando o partido conservador norueguês decidiu premiar a ambos, o venezuelano em 2011 e a cubana em 2013, com o prêmio Lindebraekke de Direitos Humanos e Democracia.

Privilégios
Outro elemento que estimula os jovens de classe média a protestar contra o projeto bolivariano é a defesa de privilégios, na opinião da socióloga e psicóloga social Carmen Elena Balbás.

‘É uma reação em defesa à classe social e a um estilo de vida’, afirmou ela à BBC Brasil.

Dirigente estudantil nos anos 90, Sérgio Sanchéz tem outra explicação para a disputa entre os dois modelos de sociedade.

‘Desde que entram na universidade, os estudantes ouvem que devem obter o diploma para serem ricos, trabalham numa multinacional e morar em Miami. A revolução bolivariana está brigada com este modelo e seus objetivos de vida’, sentenciou Sanchéz.

‘Por essa razão, muitos deles se veem sem futuro. Essa é a raiz do problema’, acrescentou.

As preocupações de Emily Vera caminham nesta mesma direção. A jovem universitária considera que o projeto de ‘revolução’ proposto pelo chavismo não preenche as necessidades e anseios de parte da juventude venezuelana.

‘Nossos jovens se formam e querem deixar o país porque pensam que terão melhores oportunidades fora daqui’, afirmou.

Revolução colorida
Um punho cerrado identifica e inspira os jovens do JAVU. O símbolo é o mesmo do movimiento estudantil Otpor (Resistência) da Sérvia – que ajudou a derrubar o regime de Slobodan Milosevic, em 2000. O Otpor, que contou com ajuda financeira dos EUA, se transformou numa espécie de centro de formação de jovens e sua atuação foi decisiva para o êxito das chamadas ‘revoluções coloridas’ que se espalharam por ex-países da União Soviética a partir do ano 2000.

De olho no que aconteceu no velho continente, Emily Vera diz que ela e seus colegas permanecerão nas ruas até cumprirem seu objetivo final: ‘Queremos uma mudança de governo’.

O enfrentamento no campo de batalha instalado na praça Altamira, centro nervoso dos protestos, permanece vivo. A mesma cena se repete quase todos os dias. Durante horas, os jovens atacam o cordão de isolamento da polícia com seu ‘arsenal’ atípico aliado a coquetéis molotov e uma espécie de escopeta que dispara sinalizadores.

Em seguida, a polícia responde com gás lacrimogêneo e balas de borracha. No último domingo, no entanto, a disputa ideológica esteve marcada com música.

Em meio a escudos e veículos blindados, os policiais instalaram gigantescas caixas de som e fizeram ecoar a todo volume a música do cantor popular venezuelano, Ali Primera – ícone dos bolivarianos.

Enquanto os estudantes se perdiam na fumaça do gás lacrimogêneo, escutavam o refrão: ‘Não, não basta rezar, faz falta muita coisa para conseguir a paz’.