* A data é uma suposição já que a matéria a seguir é a Capa da Revista no mês de Fevereiro.
Como a atuação dos institutos, fundações empresariais e entidades do terceiro setor mexeu com a correlação de forças no debate das políticas educacionais
Cristina Charão e Lia Segre
Colaborou Deborah Ouchana
Manifestações dos professores no Rio de Janeiro, em 2013: críticas à política meritocrática das secretarias de educação.
Problemas complexos exigem respostas complexas. Nas entrelinhas desta que se tornou uma máxima do mundo das políticas públicas, é possível vislumbrar também a complexidade das discussões necessárias para que estas respostas sejam afinal formuladas. Em um tema de interesse nacional como a educação, a grandiosidade das tarefas implicadas multiplica o número de atores envolvidos. No Brasil, como em muitos outros países, a arena das políticas públicas educacionais, que historicamente congregava forças como sindicatos de profissionais da educação, movimentos estudantis e uma boa parcela da Academia, recebeu, nas duas últimas décadas, um novo participante, ausente até então: o setor privado não diretamente ligado ao mercado educacional. A presença dos institutos e fundações empresariais, criados na esteira da ascensão do conceito de responsabilidade social, é cada vez mais determinante nos caminhos tomados pelos debates e disputas políticas travadas em torno da educação, influenciando, inclusive, as políticas públicas. Como se configura, então, a disputa na atual agenda educacional? Quais as influências dessa disputa de forças no modelo de educação que o Brasil se propõe?
Desde a realização do primeiro Censo Gife em 2001, pesquisa realizada pelo Grupo de Institutos, Fundações e Empresas para levantar o perfil do investimento social privado no Brasil, a educação aparece como a área que recebe o maior volume de ações e investimentos. No último levantamento, referente aos anos de 2011 e 2012, 87% dos institutos pesquisados realizavam ações na área. “Com a aprendizagem que foram acumulando ao longo dos anos por meio do trabalho de campo, eles criaram condições não só técnicas, mas também políticas de influenciar as políticas públicas na área da educação”, diz Andrea Bergamaschi, gerente de Projetos Estratégicos do Movimento Todos pela Educação – coalizão criada para reunir representantes dos três setores.
Se a amplitude da agenda da educação já dava ao debate o caráter de uma arena permanente de dados, versões e propostas, a entrada desses novos atores no cenário reforça os conflitos inevitáveis. De um lado, organizações relacionadas ao setor privado têm como visão prevalente, mas não única, um modelo educacional construído
sobre a ideia de eficiência na gestão baseada na padronização pedagógica e curricular, aferição permanente de resultados e um sistema associado de recompensa a escolas e professores considerados bem-sucedidos. De outro, os atores tradicionais do campo criticam o que tem sido chamado privatização não clássica da educação e que advogam pelo comprometimento do Estado com a formulação e manutenção das políticas públicas educacionais, garantindo acesso gratuito e ensino de qualidade universal.
Política de resultados
“Até 10, 20 anos atrás, o que havia de presença do setor privado disputando rumos da educação eram basicamente as escolas, os grupos privados de educação incidindo nos espaços de decisão para tirar benefícios enquanto investidores”, historia Márcio da Costa, professor pesquisador da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do Observatório Educação e Cidade. Para Costa, esses novos atores, organizados essencialmente nos institutos e fundações empresariais, entram na disputa da agenda trazendo uma visão mais voltada para resultados e objetivos educacionais.
Na análise de Andrea, o interesse do setor privado pelo temário da educação cresce com o estabelecimento da agenda da responsabilidade social empresarial. Em uma primeira etapa, esse interesse se manifesta em projetos localizados e baseados na ideia de levar a expertise do mercado para contribuir com os problemas da gestão pública. O direcionamento das ações para o debate das políticas públicas dá-se mais recentemente.
“A gente se vê, hoje, como mais um ator da sociedade civil no debate educacional”, diz Andrea. Segundo ela, não se trata de fazer uma proposta de qual escola deve existir, mas de defender as metas estabelecidas. “São metas basicamente de fluxo escolar: colocar a criança na escola, oferecer educação de qualidade e garantir que ela se forme”, resume.
Para os críticos, a motivação para que os atores empresariais entrem no debate torna a sua contribuição enviesada, levando a questionamentos sobre a função da escola: instruir ou educar? “A questão que move esses empresários é ‘como nós podemos ter uma mão de obra possível para atuar no mercado de trabalho hoje’, o que faz com que qualquer proposta pedagógica e curricular seja medíocre, porque não tem visão de longo prazo ou perspectiva cidadã”, diz Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que articula mais de 200 movimentos sociais, sindicatos e organizações não governamentais.
O professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Luiz Carlos de Freitas também avalia que a entrada dos institutos e fundações está ligada a interesses muito específicos do empresariado, ligados a um fenômeno recente da economia: o aumento dos salários médios e a estagnação da produtividade. “Para aumentar a produtividade e maximizar os lucros há que se alterar vários componentes da política econômica, entre eles, aumentar a qualidade da educação”, diz Freitas. “Embora esta seja uma preocupação legítima, no contexto da sociedade em que vivemos, o fato é que a educação não pode se resumir a isso.”
Campo de testes
Andrea reconhece que o Todos surge na esteira deste processo que considera de amadurecimento do papel do setor privado na agenda educacional. O movimento foi lançado em 2006, com a presença de representantes do ministério e secretarias da Educação e de institutos e fundações, além de diversos empresários, anunciando um compromisso coletivo com metas a serem cumpridas até 2022, ano do bicentenário da Independência. Entre seus principais artífices estão alguns dos maiores institutos e fundações privadas do país, como a Fundação Itaú Social, Fundação Telefônica, Fundação Bradesco e Instituto Camargo Corrêa, Fundação Lemann, além do Movimento Brasil Competitivo, liderado pelo empresário Jorge Gerdau Johanpetter, hoje presidente do Conselho de Governança.
O trabalho do Todos pela Educação, diz a gerente, é tentar capitalizar iniciativas que estejam dando resultado e impactando positivamente o desempenho dos alunos para influenciar políticas públicas. “Porque muitas vezes, no dia a dia dos gestores da educação pública, isso passa batido.”
A influência nas políticas pode ser percebida em um exemplo vindo do próprio Todos pela Educação. Em 2011, ao lado de vários parceiros e, inclusive, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a organização realizou a Prova ABC com crianças dos 2º e 3º anos do ensino fundamental. O objetivo era avaliar o processo de alfabetização das crianças. “Agora, o governo irá realizar a Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA)”, comemora Andrea.
O depoimento do diretor de Articulação e Inovação do Instituto Ayrton Senna (IAS), Mozart Neves Ramos, corrobora a impressão de sintonia entre as proposições feitas pelo setor privado e as políticas públicas. Ex-secretário de Educação de Pernambuco e também ex-diretor do Todos pela Educação, Ramos diz que sempre lhe chamou a atenção o fato de as fundações e o IAS, em especial, trabalharem com a noção de metas. “O IAS sempre teve em seu DNA a gestão de resultados: metas para alfabetização, metas para correção de fluxo”, diz. “Isso era algo novo há duas décadas, mas, hoje em dia, com o Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, principal avaliação do sistema realizada pelo MEC], todo mundo trabalha com metas educacionais”, reflete.
Para a superintendente da Fundação Itaú Social, Isabel Santana, o setor privado funciona, justamente, como uma espécie de campo de testes de tecnologias sociais que viram políticas públicas. “Como iniciativa privada podemos nos permitir desenvolver laboratórios, testar metodologias, ter tempo de avaliação, de acompanhamento antes de propor isso para uma escala maior”, comenta. Um dos exemplos citados por ela de como esse laboratório funciona é a Olimpíada Brasileira de Língua Portuguesa.
Originalmente, a Itaú Social lançou, em 2001, o projeto Escrevendo o Futuro, voltado à formação de educadores para o ensino da escrita e a realização de concursos de redação entre os alunos dos professores participantes. “Hoje, somos parceiros técnicos da Olimpíada a convite do MEC. Transferimos para o Ministério toda a estratégia”, conta Isabel. “Tornou-se uma ação nacional, com 98% dos municípios brasileiros registrando escolas participantes.”
Influência na política pública
Posta como contribuição técnica feita a partir de um know-how adquirido em campo, a presença dos institutos e fundações empresariais no cenário da educação desloca o “campo de batalha” da agenda educacional dos espaços legislativos ou participativos de definição das políticas para o Executivo. Para Daniel Cara, as parcerias acabam moldando as políticas sem que haja participação efetiva da comunidade na sua definição e, muitas vezes, à margem do controle social exigido para as políticas públicas.
De acordo com a Pesquisa de Informações Básicas Municipais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2011, 1.152 municípios brasileiros mantinham relações com o setor privado na área de educação por meio de algum convênio ou apoio sem vínculo contratual. A pesquisa não distingue a natureza das organizações.
É possível ter uma ideia do alcance do trabalho dos institutos e fundações analisando a atuação de alguns deles. O Instituto Ayrton Senna, um dos pioneiros na atuação com foco na educação e no suporte a políticas públicas na área, está presente hoje em mais de 1.300 municípios em 24 estados, atendendo cerca de dois milhões de crianças e jovens. De acordo com Ramos, as parcerias surgem a partir de demandas trazidas ao instituto pelo poder público. “Através dos nossos programas, oferecemos material pedagógico, formação de professores, ferramentas de gestão e monitoramento de resultados”, diz informa.
Uma das formas como os pacotes de soluções chegam aos municípios é, inclusive, um programa do Ministério da Educação: o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, inspirado, justamente, nos objetivos estabelecidos pelo movimento de mesmo nome. Ao assumir o compromisso, os municípios precisam apresentar um Plano de Ações Articuladas (PAR). Os municípios podem apresentar, como parte do plano, ações e programas realizados pelos institutos e fundações. As ações do PAR de cada município são financiadas pelo MEC.
Consultoria às redes
Mais recentemente, é possível verificar um movimento de articulação dos institutos e fundações para além de uma agenda política comum, como a representada pelo Movimento Todos pela Educação. Nas duas maiores redes públicas de ensino do país, um pool de organizações empresariais dá suporte a algumas das principais políticas colocadas em prática.
Em São Paulo, o Compromisso Educação para Todos é um amplo programa de reforma da rede estadual de educação que inclui desde a revisão do plano de carreira docente a novas propostas pedagógicas para o ensino fundamental e médio. De acordo com a Secretaria Estadual de Educação, todas as ações realizadas hoje dentro da rede estão conectadas através do programa.
O desenho do programa foi feito a partir de um relatório produzido pela empresa de consultoria McKinnsey & Company, contratada pela associação Parceiros da Educação. “É um dos melhores programas que eu já vi”, comemora Jair Ribeiro, diretor-presidente e sócio do banco Indusval & Partners, sócio-diretor da Casa do Saber e coordenador-geral da associação. De acordo com ele, o foco da sua organização é exatamente este: financiar consultorias para que os governos possam desenhar ações que efetivamente melhorem o desempenho das redes de educação.
De acordo com o site da secretaria, apoiaram a iniciativa outras 14 organizações, a maioria institutos e fundações empresariais, entre elas a Itaú Social. “Nós participamos com apoio financeiro mas, o mais importante: por meio de suporte técnico com essas tecnologias que hoje estão sendo implantadas”, resume Isabel Santana. Para ela, essa atuação em conjunto das organizações do setor privado é uma inovação importante.
Tanto a Itaú Social como a Parceiros da Educação têm representantes no Conselho Consultivo do Programa Educação: Compromisso de São Paulo. De acordo com levantamento feito pelo Observatório da Educação, da Ação Educativa, todos os dez representantes da sociedade civil neste conselho estão ligados às organizações empresariais parceiras da ação.
Já no município do Rio de Janeiro, o Projeto Gente, acrônimo de Ginásio Experimental de Novas Tecnologias Educacionais, começou a ser idealizado em 2012 pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, em parceria com o Instituto Natura e outros institutos, como Fundação Telefônica Vivo, Intel, Microsoft, Tamboro e Instituto Ayrton Senna. O projeto parte de algumas experiências já existentes na própria rede, como os Ginásios Experimentais, e de experiências internacionais, como o School of One, Summit, Quest to Learn e Time to Know. A proposta do Gente é desenvolver um novo modelo de escola que tenha como um de seus pilares o ensino personalizado.
Os parceiros do projeto se dividiram em cinco frentes de trabalho: infraestrutura física, infraestrutura de tecnologia, projeto pedagógico, sistematização e avaliação e comunicação. O projeto custou R$ 3,5 milhões, sendo que R$ 2,5 milhões vieram de parceiros privados. Alice Ribeiro, coordenadora do projeto pela secretaria, destaca que, embora os parceiros tenham impulsionado a criação do Gente, o projeto é uma responsabilidade da rede, que é responsável pela manutenção das despesas correntes da iniciativa – como merenda, pagamento de professores e funcionários, internet, gestão do projeto. “De forma alguma sem os parceiros o negócio cai. A ideia é de complementaridade, e não suplementaridade”, afirma. “A ideia é que os aportes dos parceiros sejam feitos de uma vez só e fiquem para a rede. Existem, por exemplo, parceiros que dão apoio para a avaliação do projeto, e para isso é necessário um investimento financeiro.”
Alice ressalta que mais importante que o apoio financeiro, o conhecimento técnico oferecido pelos institutos parceiros foi fundamental para a realização do projeto. “Temos parceiros que trazem experiências prévias, seja no contexto brasileiro, seja no internacional. Isso é, pra gente, ouro em pó”, comenta. Segundo Alice, esses parceiros continuam envolvidos no acompanhamento do projeto piloto. Há reuniões bimestrais com todos os parceiros e encontros específicos com os grupos de trabalho quando surge alguma questão.
Consequências
Como fica a relação entre setor público e privado quando as parcerias ganham dimensões como as descritas acima? Márcio da Costa, da UFRJ, lembra que é justamente a fragilidade do Estado em manter uma estrutura adequada de pessoal nas áreas de gestão da educação o que abre o caminho para a forte influência dos atores privados na execução das políticas. Costa lembra que esta influência já podia ser percebida quando, há quase duas décadas, os municípios foram instados a criar os Planos Municipais de Educação. “Havia consultorias vendendo os planos para várias cidades”, lembra. Hoje, esta aproximação passa pela realização dos processos de avaliação e se concentra especialmente nos aspectos de treinamento de pessoal e assessorias em gestão.
“Não há problema em comprar um serviço aqui, outro ali. Não é inteligente, mesmo, manter grandes estruturas para realizar coisas pontuais, como uma avaliação”, diz Costa. Para ele, a contribuição dessas organizações refresca a agenda educacional e não é possível negar o know-how concentrado hoje nos institutos e fundações. “Mas o Estado deveria garantir que houvesse inteligência interna, que a condução das políticas fosse de fato realizada pelas equipes de gestores e educadores. E hoje essas equipes são incapazes de fazer isso.”
Luiz Carlos de Freitas faz uma crítica mais contundente. “O setor privado pode colaborar com a educação, mas não pode tentar substituir os profissionais da educação alojados nas redes de ensino”, diz o pesquisador da Unicamp, ressaltando que a contribuição fundamental deveria ser na infraestrutura e nos meios, e não nas atividades-fins. “O pedagógico é assunto de educadores profissionais e não de filantropos. Deve ser definido nas redes de ensino, com pessoal de carreira que tem o conhecimento de como a rede funciona e foi preparado especificamente para tal.”
Resta saber quais serão os efeitos dessas parcerias a longo prazo. Em que medida elas ajudam professores e gestores a construir saberes para uma mudança real nas relações escolares e, em última instância, para o aprendizado?
Comentários