Na capital paulista, desigualdade, concentração de serviços e especulação imobiliária são determinantes no acesso à educação pública de qualidade. Analfabetismo e evasão são maiores na periferia
São Paulo – Quando o assunto é educação, o crescimento econômico centralizado nas regiões mais ricas, a ocupação desordenada do território e a especulação imobiliária imprimem sua marca perversa em São Paulo, maior cidade do país: a desigualdade de oportunidades. É a mesma lógica que ordena a oferta dos demais serviços públicos que se concentram no centro expandido, deixando para as franjas da cidade escolas carentes de infraestrutura adequada, mal conservadas e mais vulneráveis à maior rotatividade de professores – fatores decisivos na qualidade do ensino público que deveria reduzir essas diferenças.
Segundo o estudo Educação e Desigualdade na Cidade de São Paulo, lançado recentemente pela organização não governamental Ação Educativa, nenhuma escola do distrito de Marsilac, no extremo sul da capital paulista, está equipada com laboratório de ciências – o equipamento é um privilégio entre as escolas públicas. Bibliotecas e salas de leitura são artigos de luxo, ofertados somente em metade dos colégios. Já na parte rica da cidade, onde em tese a população não dependeria tanto desses recursos como nas regiões mais carentes, a situação é outra. No Alto de Pinheiros, na Lapa e na Consolação, a maioria das escolas (66,7%) conta com laboratório de ciências (66,7%).
“É também nas escolas da periferia que há maior dificuldade para a fixação dos professores. A maioria trabalha ali enquanto espera o surgimento de uma vaga numa escola localizada em região mais centralizada”, afirma a coordenadora da Ação Educativa, Denise Carreira. “Para as escolas mais distantes, que concentram as crianças com maiores desafios educacionais, filhas de famílias com baixa escolaridade, que necessitam de mais empenho dos profissionais, acabam indo os professores que estão em começo de carreira ou os que geralmente ficaram nos últimos lugares nos concursos.”
Essas condições desfavoráveis enfrentadas pela população nas escolas da periferia têm impacto direto no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), que é maior nas regiões mais ricas e menor nas mais pobres.
Para Denise, o principal e mais cruel efeito é a negação de direitos para grande parte da população, a que proporcionalmente paga a mais pesada carga de impostos. “Muitas crianças terão seus direitos negados ao enfrentar mais dificuldades ou encarar um atendimento mais precário simplesmente por terem nascido nascer em determinada região da cidade”, aponta Denise.
É justamente o que ocorre no Jardim Iguatemi, extremo leste, bairro paulistano que está mais próximo do centro de Santo André, a 13 quilômetros, que do centro de São Paulo, a 23 quilômetros. É uma região de alta vulnerabilidade social, na qual apenas em 0,4% dos domicílios as famílias possuem renda per capita maior que cinco salários mínimos. Segundo o Conselho Tutelar, lá existem apenas duas creches para uma população é de 300 mil crianças. Além delas há apenas cinco escolas, sendo quatro estaduais e um Centro Educacional Unificado (CEU).
A jovem Marilyn Galvão Bueno, mãe de quatro crianças, conseguiu matricular apenas uma, a mais velha, Karen, de 9 anos, na escola. “Cheguei a conseguir uma vaga para um deles, mas eu levaria mais de uma hora no trajeto. Impossível para mim”, lamenta. A menina conta que adora estudar e faz planos: “Quando eu crescer quero ser atriz!”
“Na idade dela eu também queria ser atriz”, diz a vizinha Josiane Silva, de 22 anos, mãe de dois filhos, um deles de quatro anos, também fora da escola. Ela não teve oportunidade de permanecer nos estudos pelo tempo necessário para aprender a ler e escrever. “E acabei sendo o quê?!”, questiona, em tom de lamento.
A taxa de adultos analfabetos no Jardim Iguatemi é de 5,1%, semelhante ao de outros distritos pobres, como Jardim Ângela, Marsilac e Parelheiros. Nos mais ricos, como Alto de Pinheiros, Consolação, Jardim Paulista e Moema, o percentual é inferior a 1%.
O mesmo acontece com o ensino médio, etapa que por não ser obrigatória ainda é a que mais sofre com a evasão escolar. Se o total de alunos frequentando o colégio já é baixo em todo município (quase 30% dos jovens entre 15 e 17 anos estão fora do ensino médio), o atendimento é ainda menor nos distritos pobres.
As regiões mais ricas concentram o atendimento, com taxas próximas de 100%. Por outro lado, distritos mais pobres possuem menos matrículas, como Tremembé (32%), Vila Andrade (42,3%), Lajeado (48,6%), Cidade Ademar (51%) e Mandaqui (56,4%).
“Isso acaba fazendo com que a cidade perca a oportunidade de contar com todo o potencial criativo dessa população. Há muita inteligência nessas regiões e o atendimento educacional pode abrir mais possibilidades e permitir que todo conjunto da sociedade se nutra dela”, diz Denise Carrera. Mesmo nas regiões mais ricas a população negra é a que soma menos anos de estudo.
Enfrentando o desafio
Oferecer oportunidades educacionais com a mesma qualidade para os mais ricos e os mais pobres é um desafio que vai muito além do aumento do financiamento para o setor: requer políticas específicas para atender os mais pobres, conforme avaliação de Denise. “Precisamos inquirir como as políticas educacionais enfrentam a desigualdade e mudar a lógica que por décadas orientou o setor. Aí será possível distribuir melhor os equipamentos na cidade.”
Com esse objetivo, o secretário municipal de Educação de São Paulo, Cesar Callegari, anunciou em agosto passado a criação de uma fila prioritária para o atendimento em creche. A partir deste ano letivo, a Secretaria de Educação vai priorizar a matrícula de crianças pobres, de famílias com renda per capita de até R$ 70. A cada dez vagas na educação infantil, duas serão direcionadas para crianças nesse perfil.
No cadastro do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) há pelo menos 4.700 famílias nesta faixa de renda com crianças em idade de estar na creche ou pré-escola. “Elas merecem de nós uma atenção especial. A educação infantil é um direito de todos, mas elas exigem urgência porque estão em situação de vulnerabilidade. Acreditamos que isso é um critério de justiça. É olhar com cuidado para quem mais necessita do apoio do Estado”, disse Callegari na época.
Também em agosto, o prefeito Fernando Haddad (PT) e o secretário lançaram um projeto de reforma da educação paulistana, chamado Mais Educação São Paulo, que entra em vigor este ano reunindo ações consideradas tradicionais na educação, mas que vinham sendo desprezadas pelo município na gestão de Gilberto Kassab (PSD), como a aplicação de provas bimestrais e a entrega de boletins. Além disso, a prefeitura criou mais um ciclo e o aumentou a possibilidade de repetência, que antes só ocorria nos 5º e 9º anos. Com a mudança, os alunos poderão ser retidos nos 3º, 6º, 7º, 8º e 9º.
A reboque, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), anunciou em outubro um plano de reforma da educação na rede estadual, que aumenta a possibilidade de reprovação e amplia de dois para três os ciclos do ensino fundamental, além de implementar avaliações oficiais bimestrais, medidas iguais às de Haddad.
Para Denise Carreira, no entanto, enfrentar os desafios educacionais em São Paulo requer estratégias mais específicas para os distritos vulneráveis, como oferta de benefícios na carreira para os professores que aceitarem se fixar das escolas de regiões mais pobres e com mais problemas. “O ideal seria que quanto mais tempo o professor ficasse na escola distante, mais benefícios ganhasse”, sugere. “Outra coisa importante é dar estímulos para que profissionais com melhor formação e mais experiência queiram ir para essas áreas com piores indicadores.”
Ainda segundo ela, são necessárias ações que integrem as redes federal, estadual e municipal e a produção de informação de qualidade sobre educação em São Paulo, a exemplo do que faz o Instituto de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), ligado ao Ministério da Educação. “É fundamental também avançar em uma perspectiva mais metropolitana, que englobe o conjunto dos municípios da região, porque existe nas fronteiras a circulação de pessoas em condições muito precárias.”
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