Em debate em Brasília, o sociólogo e colunista de Carta Maior reconheceu os avanços do período, mas apontou os desafios ainda pendentes para o país.
Najla Passos
Brasília – Os dez anos de governos populares proporcionaram avanços significativos para o Brasil, mas também deixaram pendentes desafios que precisam ser enfrentados com urgência para se garantir a democratização plena do país. Para o sociólogo e colunista da Carta Maior, Emir Sader, que participou do debate sobre o livro “10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma”, nesta quarta (16), em Brasília, o Brasil combateu a ditadura política clássica, democratizou os direitos sociais, mas, para avançar, precisa acabar com as ditaturas do dinheiro, da terra e da palavra, além de aprimorar seu sistema eleitoral.
Para explicar as conquistas e desafios brasileiros do período, analisadas no livro que organizou e que conta com a participação de 21 intelectuais da esquerda brasileira, Emir traçou o panorama dos últimos 50 anos de um mundo que deixou de ser bipolar para se tornar unipolar, sob a hegemonia imperial norte-americana. Na sua avaliação, com o fim da União Soviética, a passagem do ciclo expansivo pra o ciclo recessivo do capitalismo e a mudança do padrão keynesiano de bem-estar social para o do liberalismo de mercado, o mundo piorou. “São três elementos negativos, regressivos, que se combinaram e fizeram com que o mundo tivesse retrocessos importantes. O mundo, hoje, é mais desigual, tem mais miseráveis, tem mais guerras, tem menos estabilidade do que teve antes”, observou.
A América Latina, segundo ele, foi vítima privilegiada dessas mudanças. Primeiro, veio a crise da dívida, no final dos anos 70 e começo dos 80. As ditaduras militares nos países mais importantes do continente quebraram a capacidade de resistência dos movimentos populares e abriram caminho para a implantação do neoliberalismo, que fez mais governos na América Latina do que em qualquer outro continente. E nas modalidades mais radicais. “A América Latina passou por este período de retrocesso brutal nas últimas décadas, até essa virada de negação ao neoliberalismo, nos últimos aos, que elegeu essa quantidade de governos novos: Venezuela, Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia e Equador”, contextualizou.Na avaliação do intelectual, a priorização das políticas sociais em detrimento das medidas de reajuste fiscal, da integração regional e Sul-Sul em contraposição à Alca e aos tratados de livre-comércio com os Estados Unidos, e do papel do Estado como indutor do crescimento econômico, ao invés da continuidade do modelo de ‘estado mínimo e mercado máximo’, conseguiram fazer com que o continente virasse o jogo. “Todos esses países mudaram de maneira similar. Os mais moderados ainda estão saindo do neoliberalismo: Brasil, Argentina e Uruguai. Outros, além de ser anti-neoliberais, se colocam objetivamente como socialistas: Venezuela, Equador e Bolívia. Então, tem elementos comuns e diferenças internas entre eles”. Para Emir, o caminho brasileiro foi um dos mais empíricos e pragmáticos, o que justificou a ideia do livro: a necessidade de teorizar um período em que a intuição do ex-presidente Lula foi mais determinante para se encontrar brechas contra o neoliberalismo do que estudos aprofundados. Segundo ele, os primeiros anos do governo Lula surpreenderam pela adoção de políticas conversadoras, especialmente no campo econômico. A mudança só começou a ocorrer após as crises do final de 2005, agravadas pela denúncia do chamado “mensalão”: com as políticas sociais, o governo recuperou o apoio popular e, a partir da observação de fatos empíricos como a subordinação excessiva aos Estados Unidos e a dificuldade de implantar sua política, mudou sua política externa e recuperou a capacidade do Estado para induzir o crescimento.
Problemas pendentes
O sociólogo registrou que, apesar dos avanços inegáveis na melhoria da qualidade de vida do brasileiro, o projeto dos governos Lula e Dilma deixaram pendentes problemas estruturantes que, hoje, impedem a retomada do crescimento, a melhor distribuição de renda e a democratização plena. O principal e mais urgente deles, na avaliação do pesquisador, é a necessidade de se combater a hegemonia do capital financeiro que, desregulamentado, é um convite à especulação financeira. Nas suas palavras, a “ditadura do dinheiro”.
O segundo grande problema apontado por ele é a hegemonia do agronegócio no campo. “Um dos fatores seguros no mundo é que a China vai continuar a comer e a importar soja. O problema é que a soja produzida pelo agronegócio é transgênica, deteriora a terra, e se desenvolve em contraposição à agricultura familiar”. A “ditadura da terra”.
O monopólio dos meios de comunicação, ou a “ditadura da palavra”, é o terceiro grande problema apontado. “No Brasil, é ainda mais escancarado do que nos demais países da América Latina. Na Argentina, na Venezeula, no Equador, você tem mídia impressa alternativa, fora outras formas de mídia. Há uma disputa também nestas mídias, e não apenas na internet. E no Brasil não se avançou nada em relação a isso. O governo está pressionado e condicionado pelas pautas. Na internet, nós fazemos guerrilha, mas o exército regular ainda é o da grande mídia tradicional, que dá a pauta. Os jornais tem menos importância, vendem cada vez menos, mas são eles que dão a pauta. E o governo nunca falou nada sobre isso”.
A quarta e última pendência apontada por ele é o financiamento público das campanhas eleitorais que, inclusive, entrou na pauta do governo após as manifestações de junho. Na sua avaliação, não chega a significar uma verdadeira reforma política, mas sim a do sistema eleitoral. “O Congresso deveria refletir a diversidade da sociedade brasileira. Mas se a gente vai ver os lobbys que controlam o congresso, o do agronegócio é enorme, e os trabalhadores rurais, que são ampla maioria, têm dois representantes. E isso acontece porque entre a sociedade e sua representação parlamentar há a mediação do dinheiro”, afirmou.
Para Emir, o caminho é lutar pela assembleia constituinte proposta pela presidenta Dilma para discutir a reforma política, da qual Lula falava desde a sua campanha eleitoral. E ir além. “Temos que ampliar esta agenda para incluir a democratização da mídia e fazer a reforma tributária, sem as quais o Estado não terá recursos e não teremos a democratização da opinião pública. (…) No Brasil, o dinheiro ainda perverte os meios de comunicação e corrompe a política”, afirmou.
Temas atuais
Emir Sader criticou duramente a máxima de que o Brasil se tornou um país de classe média. “Isso é música que o Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] canta e os governantes ficam felizes”, disparou. E alertou que essa avaliação equivocada foi o que impediu que Lula e Dilma enxergassem os problemas que deflagraram as manifestações de junho. “O país tem um sistema de transportes miserável e não pensou políticas públicas para a juventude. O governo não toca em questões como aborto, drogas e comunicação. (…) É um governo velho e conservador em relação a esses temas”, afirmou.
Em contrapartida, elogiou o programa Mais Médicos como uma grande vitória sobre a direita brasileira que, na opinião dele, ainda não tem a dimensão do estrago que a vinda dos médicos cubanos fará contra a propaganda do modelo capitalista. “É bom que todos comparem que médicos o socialismo forma e que médicos o capitalismo forma. E nós vencemos essa batalha ideológica antes das consultas dos cubanos fazerem efeito”, observou. Conforme ele, pela primeira vez a saúde pública virou tema nacional. “E cadê os maus médicos? Desapareceram”, brincou.
Sobre a reforma agrária, lembrou que a vida do homem do campo melhorou, mas o país não enfrentou o problema histórico da alta concentração de terra.
E quanto ao papel do Lula nas próximas eleições, foi mais do que otimista: “O Lula está melhor do que nunca. Primeiro, porque já refletiu sobre o que deixou de fazer. Segundo, porque não precisa mais se preocupar com o que o Temer (vice-presidente do PMDB) está pensando lá no Palácio do Planalto”.
O debate
O debate sobre o livro “10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma” foi organizado pela Editora Boitempo e pelo Sindicato dos Bancários. O livro pode ser adquirido pelo site da editora, por R$ 30 ou baixado gratuitamente por este link.
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