Suficiente já foi dito sobre as propostas de plebiscito, democracia direta e outras que foram feitas pelo Poder Executivo em respostas às grandes manifestações populares de junho. Várias delas são notoriamente atabalhoadas e demagógicas e, felizmente, estão sendo gradativamente abandonadas, à medida que o bom senso se impõe.
Há, porém uma consequência duradoura e deletéria da orientação política geral que se implantou há cerca de dez anos no País, que é a de tentar agradar a todos os setores da sociedade e cooptá-los em nome do sucesso eleitoral e da permanência no poder. O que é alarmante é esse comportamento estar atingindo agora as melhores universidades brasileiras. Ora são cotas de diversos tipos para ingresso nas universidades públicas para compensar discriminações ocorridas no passado; ora são propostas de eleições diretas para dirigentes universitários, como se essas instituições de ensino superior fossem clubes recreativos ou sindicatos; ora é serviço civil obrigatório para resolver os problemas do precário atendimento médico à população; ora a importação de médicos – e por aí vai.
O que tudo isso tem em comum é que tenta eliminar algo fundamental: a meritocracia. Isto é, que a aptidão ou o conhecimento sejam o critério principal do sucesso, quer na conquista de cargos de direção, quer na realização de trabalhos técnicos e científicos, no caso das universidades.
A meritocracia foi uma das grandes conquistas da Revolução Francesa (1789-1799), em que foram eliminados os privilégios da aristocracia. O sucesso posterior de Napoleão Bonaparte como grande general deveu-se em grande parte à escolha de oficiais pelo mérito, e não por seus títulos de nobreza, como ocorria antes de 1789.
É esse o significado da palavra igualdade na trilogia que caracterizou aquela revolução – liberdade, igualdade e fraternidade. O que se almejava na ocasião era igual oportunidade para todos.
A mesma característica têm as grandes escolas de ensino superior criadas na França pós-revolução, como a Escola Politécnica de Paris, a Escola Normal Superior e a Escola Nacional de Administração, que formam até hoje os quadros dirigentes franceses e nas quais o ingresso é feito exclusivamente pelo mérito. Vale a pena mencionar aqui que a ideia básica da meritocracia foi incorporada até por Karl Marx, ao esboçar como seria um mundo onde a exploração do trabalho pelo capital fosse eliminada: um mundo em que “cada um daria de acordo com suas habilidades e cada um receberia de acordo com suas necessidades”.
A meritocracia é um princípio que sempre esteve presente no desenvolvimento da ciência, área em que ela é soberana e o uso de títulos e de poder nada pode contra a evidência. A História está cheia de episódios em que autoridades tentaram suprimir ou manipular a evidência científica. Todas essas tentativas falharam.
As grandes universidades do mundo seguem o mesmo princípio e as brasileiras que pretendem atingir um nível comparável ao delas não poderiam adotar critérios diferentes. O que está ocorrendo no Brasil, contudo, é que existem visões conflitantes dentro do próprio governo federal quanto ao papel das universidades públicas.
Por um lado, o governo cria programas de incentivo à inovação tecnológica, promove estágios no exterior por meio do programa Ciência sem Fronteiras e de outros que se destinam a melhorar o desempenho das universidades, essencial para aumentar a competitividade econômica do País. Por outro, cria cotas sociais e raciais, que no curto e no médio prazos tendem a baixar o nível dessas universidades, que já deixam a desejar em muitas áreas.
Introduzir cotas nas universidades públicas brasileiras como instrumento para compensar/corrigir discriminação racial ou social pode ser mais fácil e menos oneroso do que resolver o problema fundamental, que é tornar o ensino médio melhor, o que daria mais oportunidades aos estudantes de menor renda. Mas essa é uma falsa solução.
O que a experiência nacional e internacional da introdução de cotas nas universidades nos diz é que elas não garantem que os alunos cotistas tenham o desempenho esperado, encorajam a evasão e, em particular nas áreas mais competitivas (medicina, engenharia e direito), podem levar a uma redução da qualidade dos cursos. Além disso, estabelecem um novo tipo de discriminação: contra o branco pobre (em relação ao negro pobre) e contra o pobre (branco ou negro) cuja família economizou para mandar o filho à escola privada a fim de prepará-lo melhor para os vestibulares. Há um documento recente sobre Ações Afirmativas nas Universidades Brasileiras, preparado pela Academia de Ciências do Estado de São Paulo, que discute essas questões.
Outro problema é a gestão das universidades públicas, ameaçada pela escolha de reitores por eleições diretas. Universidades têm autonomia didática, científica e administrativa, como determina o artigo 207 da Constituição da República, mas não são soberanas, sendo fundamental que não percam de vista os interesses gerais da sociedade. A eleição direta de reitores pela comunidade universitária implica sério risco de tornar as universidades prisioneiras de demandas corporativas.
Essa é a razão por que os reitores são escolhidos pelos governadores dos Estados nas universidades estaduais e pela presidente da República no caso das federais, em listas preparadas pelos conselhos universitários, nos quais os professores titulares são a maioria e os alunos e funcionários estão amplamente representados. Introduzir eleições diretas cria também o não menor risco de as universidades deixarem de cumprir suas funções básicas: o ensino, a pesquisa e a prestação de serviços à sociedade.
* José Goldemberg é professor emérito da USP e foi reitor da mesma universidade.
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