Em entrevista a livro sobre a era petista no poder, Lula reconhece os erros do partido e diz que a tarefa do PT é voltar a acreditar em valores banalizados pela disputa eleitoral
Sérgio Pardellas
O ex-presidente Lula atravessou as turbulências políticas dos últimos oito meses esquivando-se das polêmicas. Antes, durante e depois do julgamento de cabeças coroadas do PT no STF, período em que tanto ele quanto o seu governo foram questionados ética, moralmente e por práticas de corrupção, Lula limitou-se às articulações políticas e a proferir discursos para plateias específicas ao lado da presidenta Dilma Rousseff. Na única vez em que falou com a imprensa, ele preferiu não discorrer sobre temas espinhosos envolvendo o PT e sua gestão. O silêncio foi quebrado em entrevista de 20 páginas para o livro “Lula e Dilma, 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil”, da Editora Boitempo. Ao fazer um balanço sobre a era petista no poder, Lula referiu-se ao momento seguinte à denúncia do mensalão como o mais delicado do governo e voltou a reconhecer os erros cometidos pelo PT, reeditando postura adotada durante a eclosão do escândalo em 2005. “O PT cometeu os mesmos desvios que criticava. O PT precisa voltar a acreditar em valores banalizados por conta da disputa eleitoral. É provar que é possível fazer política com seriedade. Pode fazer o jogo político, mas não precisa estabelecer uma relação promíscua para fazer política”, disse Lula. Na avaliação do ex-presidente, o PT deveria “reagir” e empunhar a bandeira da reforma política para aprovar o financiamento público de campanha, caso contrário “a política vai virar mais pervertida do que já foi em qualquer outro momento”. “Às vezes eu tenho a impressão de que partido político é um negócio”, emendou.
O PAÍS SOB LULA E DILMA
Livro com 384 páginas e tiragem de três mil exemplares traz 21 artigos de especialistas com reflexão sobre o período pós- neoliberal a partir da ótica progressista
A entrevista foi concedida no dia 14 de fevereiro ao sociólogo Emir Sader, organizador da publicação, e ao professor e pesquisador argentino especialista em educação, Pablo Gentili, no Instituto Lula, em São Paulo. Ao passar em revista os anos do PT no poder, Lula também falou sobre a ansiedade e as dúvidas do início do mandato e das pressões que sofreu até de amigos próximos para não lançar Dilma candidata à sua sucessão. Demonstrou ainda seu ressentimento com a mídia, a quem acusou de se transformar num partido político de oposição, e lançou uma aposta: “o Brasil será a quinta economia do mundo em 2016”. O livro de 384 páginas e tiragem de três mil exemplares será lançado no dia 13 de maio. A publicação reúne reflexões de especialistas em 21 áreas, entre eles Luiz Pinguelli Rosa, Luiz Gonzaga Belluzzo e José Luis Fiori, com o objetivo de aprofundar as discussões sobre os governos Lula e Dilma a partir da ótica progressista. Em artigos, os especialistas analisam as tensões em meio às quais se desenvolveu a política econômica do governo e discorrem sobre como foram implementadas as políticas sociais, seus sucessos e obstáculos até hoje não superados. Seguem trechos da entrevista de Lula:
Qual o balanço que o sr. faz dos anos de governo do PT e aliados?
Lula – Esses anos, se não foram os melhores, fazem parte do melhor período que este país viveu em muitos e muitos anos. Se formos analisar as carências que ainda existem, as necessidades vitais de um povo na maioria das vezes esquecido pelos governantes, vamos perceber que ainda falta muito a fazer para garantir a esse povo a total conquista da cidadania. Mas, se analisarmos o que foi feito, vamos perceber que outros países não conseguiram, em 30 anos, fazer o que nós conseguimos fazer em dez anos.
Qual foi o grande legado dos dez anos de seu governo?
Lula – (…) As pessoas sabem que este país tem governo, que este país tem política, que este país passou a ser tratado até às vezes como referência para muitas coisas que foram decididas no mundo. Esse é um legado que vai marcar esses dez anos. E eu tenho convicção de que, com a continuidade da companheira Dilma no governo, isso vai ser definitivamente consagrado. Parto do pressuposto de que chegaremos a 2016 como a quinta economia do mundo.
Quando começou o governo, o sr. devia ter uma ideia do que ele seria. O que mudou daquela ideia inicial, o que se realizou e o que não se realizou, e por quê?
Lula – Tínhamos um programa e parecia que ele não estava andando. (…) Eu lembro que o ministro Luiz Furlan, cada vez que tinha audiência, dizia: “Já estamos no governo há tantos dias, faltam só tantos dias para acabar e nós precisamos definir o que nós queremos que tenha acontecido no final do mandato. Qual é a fotografia que nós queremos.” E eu falava: “Furlan, a fotografia está sendo tirada” (…). Tem que ter paciência. Eu acho que fui o presidente que mais pronunciou a palavra “paciência”. Senão você fica louco.
Quando o sr. perdeu a paciência?
Lula – (…) No começo tinha muita ansiedade. “Será que nós vamos dar conta de fazer isso? Será que vai ser possível?”, eu me perguntava. Tivemos tropeços, é lógico. O ano de 2005 foi muito complicado. Quando saiu a denúncia (do mensalão) foi uma situação muito delicada. Se não tivéssemos cuidado, não iríamos discutir mais nada do futuro, só aquilo que a imprensa queria que a gente discutisse. Um dia, eu cheguei em casa e disse: “Marisa, a partir de hoje, se a gente quiser governar este país, a gente não vai ver televisão, a gente não vai ver revista, a gente não vai ler jornal.” Eu tinha uma equipe e criamos uma sala de situação, da qual participavam Dilma, Ciro (Gomes), Gilberto (Carvalho) e Márcio (Thomaz Bastos). E era muito engraçado: eu chegava ao Palácio e eles estavam todos nervosos. E eu estava tranquilo e falava: “Vocês estão vendo? Vocês leem jornal… Vocês estão nervosos por quê?”
Por que seu governo provocou tanta reação da elite e da mídia? A reação das oposições aos governos do PT não é desproporcional, tendo em vista os resultados que foram apresentados?
Lula – (…) Eles achavam que nós não passaríamos de uma coisa pequenininha, bonita e radical. E nós não nascemos para sermos bonitos, nem radicais. Nós nascemos para ganhar o poder.
Mas vocês nasceram radicais…
Lula – O PT era muito rígido, e foi essa rigidez que lhe permitiu chegar aonde chegou. (…) Eu era um indesejado que chegou lá. Sabe aquele cara que é convidado para uma festa, e o anfitrião nem tinha convidado direito? (…) E depois, tentaram usar o episódio do mensalão para acabar com o PT e, obviamente, acabar com o meu governo. Na época, tinha gente que dizia: “O PT morreu, o PT acabou.” Passaram-se seis anos e quem acabou foram eles. O DEM nem sei se existe mais. O PSDB está tentando ressuscitar o jovem Fernando Henrique Cardoso porque não criou lideranças.
A negociação é a pré-condição para a solidez do governo?
Lula – (…) Nós aprendemos a construir as alianças necessárias. Se não for assim, a gente não governa (…). O meu medo é que se passe a menosprezar o exercício da democracia e se comece a aplicar a ditadura de um partido sobre os demais. Não gosto muito da palavra hegemonia, sabe. O exercício da hegemonia na política é muito ruim. Mesmo quando você tem numericamente a maioria, é importante que, humildemente, você exerça a democracia. É isso que consolida as instituições de um país e foi isso que eu exercitei durante o meu mandato, e que a Dilma está exercitando agora com muita competência.
Os tabus foram quebrados à direita e à esquerda? Como se sentia com isso?
Lula – (…) Foram oito anos que permitiram que a gente, ao concluir, pudesse dar de presente ao Brasil a eleição da primeira mulher presidenta. Essa foi outra coisa muito difícil de fazer. Eu sei o que aguentei de amigos meus, amigos mesmo, não eram adversários, dizendo: “Lula, mas não dá. Ela não tem experiência, ela não é do ramo. Lula, pelo amor de Deus.” E eu: “Companheiros, é preciso surpreender a nação com uma novidade.”
O Brasil mudou nesses dez anos.
E o sr., também mudou?
Lula – (…) Mudei porque eu aprendi muito, a vida me ensinou demais, mas continuo com os mesmos ideais. Só tem sentido governar se você conseguir fazer com que as pessoas mais necessitadas consigam evoluir de vida.
E o PT mudou?
Lula – (…) Hoje, ou nós fazemos uma reforma política e mudamos a lógica da política, ou a política vai virar mais pervertida do que já foi em qualquer outro momento. É preciso que as pessoas compreendam que não só a gente deveria ter financiamento público de campanha, como deveria ser crime inafiançável ter dinheiro privado nas campanhas; que você precisa fazer o voto por lista, para que a briga se dê internamente no partido. Você pode fazer um modelo misto – um voto pode ser para a lista, o outro para o candidato. O que não dá é para continuar do jeito que está.
Por quê?
Lula – Às vezes tenho a impressão de que partido político é um negócio, quando, na verdade, deveria ser um item extremamente importante para a sociedade.
O PT não mudou necessariamente para melhor?
Lula – O PT mudou porque aprendeu a convivência democrática da diversidade; mas, em muitos momentos, o PT cometeu os mesmos desvios que criticava como coisas totalmente equivocadas nos outros partidos políticos. (…) Você começa a ser questionado quando vira alternativa de poder. Então, o PT precisa saber disso. O PT, quanto mais forte ele for, mais sério ele tem que ser. Eu não quero ter nenhum preconceito contra ninguém, mas acho que o PT precisa voltar a acreditar em valores que a gente acreditava e que foram banalizados por conta da disputa eleitoral. É o tipo de legado que a gente tem que deixar para nossos filhos, nossos netos. É provar que é possível fazer política com seriedade. Você pode fazer o jogo político, pode fazer aliança política, pode fazer coalizão política, mas não precisa estabelecer uma relação promíscua para fazer política. O PT precisa voltar urgentemente a ter isso como uma tarefa dele.
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