Faltam 1,157 milhão de vagas nas pré-escolas brasileiras. A educação infantil para as crianças de 4 e 5 anos é obrigatória desde 2009, quando foi aprovada a Emenda Constitucional (EC) número 59. Os municípios, em colaboração com estados e a União, têm até 2016 para atender à demanda. Até lá, para chegar a todos, a taxa de atendimento nessa etapa precisa crescer cerca de 20%. Entre as dificuldades enfrentadas estão a falta de recursos, as dificuldades de inscrição no programa federal de auxílio à expansão e o planejamento da ampliação. O desafio é grande e urgente.
O próprio Plano Nacional de Educação (PNE), em votação no Congresso, trata, em sua primeira meta, da necessidade de “universalizar, até 2016, o atendimento escolar da população de 4 e 5 anos, e ampliar, até 2020, a oferta de educação infantil de forma a atender 50% da população de até 3 anos”.
O levantamento do número de vagas necessárias para a universalização do acesso foi feito pelo economista e auditor externo do Tribunal de Contas do Estado (TCE) do Rio Grande do Sul, Hilário Royer. Apesar do grande número de crianças ainda excluídas dessa etapa, a taxa de atendimento do país subiu de aproximadamente 47% em 2001 para 80% em 2011. Enquanto há estados em que os municípios conseguiram suprir consideravelmente a demanda, como o Maranhão, que atende a 99% das crianças dessa faixa etária, há outros com grande dificuldade em expandir as vagas, como o próprio Rio Grande do Sul, que está na lanterna junto a Goiás, com cerca de 63%.
Recursos
A análise dos investimentos não é animadora. De acordo com dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) do MEC, o percentual de investimento em educação infantil em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) se mantém o mesmo ao menos desde 2000: 0,4%. Já a média geral da educação subiu de 4,7% para 5,8%, investidos, sobretudo, nos ensinos fundamental e médio. Além disso, do total de recursos destinados à Educação Básica e superior, a fatia da educação infantil caiu de 9%, em 2003, para 7,8% em 2010. Na distribuição geral, tirou-se de todos os níveis de ensino para investir mais nas séries finais do fundamental e no médio.
Graças ao aumento do PIB brasileiro nesse período, o gasto nominal por aluno subiu de R$ 924, em 2000, para R$ 2.942 em 2010 – descontando a incidência da inflação, o investimento real passou de R$ 1.753 para R$ 2.942. O aumento é considerável, mas se em 2000 o investimento por aluno da educação infantil era o maior de toda a Educação Básica, hoje é o menor.
Independentemente disso, parte dos esforços para cumprir a EC 59 fizeram parte das promessas de campanha da presidente Dilma Rousseff. Ela prometeu a construção de 6 mil creches e pré-escolas até 2014, ao custo de R$ 7,6 bilhões. Até o fim de 2012, cerca de 3 mil delas tinham sido entregues, estavam com o contrato firmado ou com obras paradas devido a irregularidades. A previsão é que esse processo se acelere e mais 1,5 mil sejam inauguradas em 2013. No final de 2012, o governo federal abriu licitações para que as prefeituras possam usar métodos alternativos à alvenaria, como peças pré-moldadas – o que deve antecipar as construções.
ProInfância
O auxílio do governo federal está concentrado no Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil (ProInfância), que passou a integrar a segunda etapa do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 2), em 2011. Como a educação infantil não é da alçada federal, o MEC apenas dispõe os recursos (e o projeto arquitetônico) para os municípios interessados em cumprir sua meta de universalização. Uma creche com 120 vagas em período integral, pelo Proinfância, custa cerca de R$ 1,4 milhão.
Mas inúmeros obstáculos dificultam o acesso aos recursos da União. Um dos pré-requisitos feitos pelo governo é o de que a prefeitura apresente um terreno regularizado, plano e com dimensões específicas. Além disso, deve ser enviado um estudo comprovando a existência da demanda e a necessidade de uma escola de educação infantil no local. Diversas redes encontram entraves nesses pré-requisitos, que impedem a construção das creches.
“Muitos municípios pequenos não conseguem participar do ProInfância pela dificuldade técnica de montar um projeto”, adverte Jodete Füllgraf, professora na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisadora na área de educação infantil. Mas as secretarias de Educação não devem desistir dos recursos federais. Priscila Cruz, diretora executiva do movimento Todos pela Educação, afirma que alguns estados também têm oferecido ajuda técnica e financeira aos municípios com dificuldades de universalizar a educação infantil pré-escolar, a exemplo de São Paulo. “Muitos municípios querem os recursos, mas não fazem a sua parte”, lamenta.
Obstáculos
Os desafios para as secretarias de Educação, segundo Priscila, são das mais diversas ordens: fazer contratações, licitações, lidar com a burocracia, conseguir regularizar terrenos em áreas da periferia que foram invadidas, fazer a terraplanagem, lidar com a conurbação, entre muitas outras. “A pouca capacidade de gestão e de implementação tem barrado a construção das escolas, que não estão conseguindo tirar o projeto do papel”, diz. Outra dificuldade, segundo ela, é a escassez de mão de obra na construção civil por conta do crescimento do país e das obras para a Copa do Mundo e Olimpíadas. Como a demanda está alta, faltam profissionais e o preço pago é elevado.
No desespero para ampliar o atendimento, mas sobrecarregados com tantos obstáculos, alguns municípios acabam criando vagas artificialmente, como relata Royer. “As redes não podem tirar vagas da creche para a pré-escola, porque também existe a meta de atender 50% das crianças de 0 a 3 anos. O que está acontecendo é que alguns municípios estão substituindo vagas em tempo integral por duas vagas em tempo parcial. Isso tem ocasionado problemas para mães que trabalham fora, porque elas não têm com quem deixar a criança.”
Apesar de tudo, para Débora Mello, professora adjunta do departamento de Administração Escolar da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e especialista em políticas públicas para a área, as d
ificuldades não refletem um desinteresse dos municípios. São apenas indicadores de que o foco nos últimos anos estava no ensino fundamental e que a discussão da educação infantil é recente e ainda incipiente. “Com essa Emenda Constitucional e o ProInfância, temos conseguido que a educação infantil comece a perpassar as secretarias de Educação e passe a ser debatida”, afirma.
Plano de Expansão
Cuiabá, capital do Mato Grosso, é um dos municípios que incluiu a universalização da educação infantil nas suas prioridades, mas nem por isso encontrou menos dificuldades que as demais prefeituras brasileiras.
Para receber os recursos do ProInfância, a rede se deparou com alguns problemas para regularizar os terrenos onde seriam construídos os Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs). “Fizemos uma força-tarefa para legalizar todas as áreas de construção, porque muitos bairros surgiram de áreas invadidas”, explica Figueiredo, secretário de Educação de Cuiabá.
Segundo ele, o deslocamento acelerado dos núcleos populacionais da cidade para a periferia, estimulados por programas habitacionais, leva pessoas a bolsões onde não há infraestrutura. “Às vezes possuímos vagas, mas um grande contingente populacional acaba mudando para outro local que não estava preparado para recebê-lo. Atendemos a população no geral, mas não geograficamente, porque fica distante das escolas.”
O secretário observa que não é fácil satisfazer os pré-requisitos do ProInfância – não por causa do programa, mas pelas condições dos terrenos em geral – e que qualquer município precisa montar uma força-tarefa para dar conta do recado. “Há recursos no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para suprir a demanda, mas vai depender do empenho de cada um para conquista dessa meta”, diz.
Para dar conta do desafio em Cuiabá, o passo inicial foi fazer um diagnóstico da demanda por educação infantil no município e, em seguida, estabelecer metas e incluí-las no Plano Municipal de Educação (PME). Essa fase do diagnóstico é essencial, pois o estudo permite ao município mapear a demanda por escolas e a melhor localização para adquirir um terreno. “Alguns municípios escolhem apenas regiões centrais para construir, sem levar em conta a periferia, e quem mora mais afastado tem de deslocar o filho até o centro”, lembra Débora.
Priscila sugere que um bom diagnóstico deve detectar quem são as crianças que estão fora da escola, qual é o seu perfil e onde residem. Também é preciso fazer um planejamento que leve em conta a malha de transporte público até a escola.
Nesse processo inicial, Figueiredo, de Cuiabá, destaca que é importante investir no aprimoramento da equipe técnica, para que os profissionais envolvidos saibam identificar oportunidades de parcerias estaduais e federais. “Sem pessoas capacitadas é difícil dar conta dos pré-requisitos para participar de programas como o Proinfância, e o município perde o acesso a um recurso importante.”
Como está alinhado ao Plano Nacional de Educação, o PME de Cuiabá prevê não apenas a ampliação da educação infantil, mas que isso seja acompanhado pela formação de professores e melhoria da qualidade.
Segundo Jodete, da UFSC, junto com a universalização é urgente pensar na qualidade, para evitar que aconteça com a educação infantil o mesmo que com o ensino fundamental, que cresceu em quantidade e hoje corre atrás de melhorar o ensino oferecido.
Com 17.557 crianças na faixa de 4 e 5 anos, de acordo com o último Censo Escolar, a capital mato-grossense está atendendo 79% da demanda: 10.115 alunos na rede municipal e mais 4.037 na rede privada e filantrópica. Segundo a Secretaria, com a inauguração dos 22 CMEIs previstos até o fim de 2013, o atendimento chegará a 89%. Depois disso, estão planejadas mais 30 unidades até 2016, o que deve suprir não apenas a demanda atual, mas a futura da cidade.
Atendimento de 0 a 3
Outro município que está aumentando gradativamente seu atendimento para alcançar a meta da EC 59 é Belo Horizonte. Assim como Cuiabá, o primeiro passo foi o diagnóstico. A Secretaria Municipal de Educação encomendou estudos junto à Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, Administrativas e Contábeis de Minas Gerais (Ipead) e ao Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar), ambos da Universidade Federal de Minas Gerais, para que descobrissem e organizassem onde estará a demanda pelas creches e pré-escolas municipais até 2030.
A partir disso, foram priorizadas as matrículas dos 4 aos 5 anos, e todos os projetos arquitetônicos de escolas já existentes foram alterados para ampliar sua capacidade de atendimento para crianças nessa faixa etária – de 270 para 440 por unidade. Mayrce Terezinha Freitas, gerente de Coordenação da Educação Infantil da Secretaria, aponta que uma dificuldade nesse processo foi não deixar de garantir a atenção também às crianças de 0 a 3 anos. “Precisamos fazer tudo com parcimônia para não ser um atendimento só de um ou do outro.
Embora a faixa de 0 a 3 fique aquém em número de vagas agora, em um curto espaço de tempo vamos conseguir atender as duas partes da educação infantil.”
Jodete alerta que em muitos municípios a necessidade de universalizar a educação infantil pré-escolar (4 e 5 anos), pela Emenda 59, e aumentar o atendimento a apenas 50% da demanda pela creche (0 a 3 anos), como previsto no PNE, acaba gerando uma cisão entre as duas etapas. “Precisa haver um esforço coletivo nessa ampliação, senão a faixa de 0 a 3 vai ficar mais frágil. Especialmente crianças de 2 e 3 anos precisam dessa socialização”, alerta.
Segundo estudo realizado pelo economista Hilário Royer, em 2001, apenas 1,093 milhão de matrículas foram feitas para essa faixa etária até 3 anos, sendo que havia na época 13,229 milhões de crianças da idade. Em dez anos, a taxa de atendimento cresceu de 8,26% para 20,93% em 2011, ano que registrou 2,307 milhões de matrículas de um total de 11,024 milhões de crianças.
Conveniadas
Outras estratégias de Belo Horizonte para ampliar a demanda são estabelecer parcerias público-privadas, para agilizar a construção de novas Unidades Municipais de Educação Infantil (UMEIs), e ampliar a rede conveniada. A Secretaria abre espaço para novos convênios, mas apenas uma média de três ao ano se inscrevem. Esse recurso está praticamente esgotado, pois 50% do atendimento já é feito
pelas 192 escolas conveniadas – que atendem 22.792 crianças, enquanto a rede própria é responsável por 22.788 vagas. “O crescimento na rede própria é muito maior. Só em 2013 temos a previsão de entrega de 13 UMEIs”, diz Mayrce.
A questão das redes conveniadas gera muitas discussões na educação, pois embora auxiliem as prefeituras a suprir a demanda, podem trazer alguns reveses, como defende Débora. “No Rio Grande do Sul existem muitas creches conveniadas. Elas são medidas alternativas, mas entendo que o atendimento é precário, e que existe um sucateamento das escolas. Manter os convênios seria mais fácil, mas o ideal é abrir mais escolas.”
As ações integradas de Belo Horizonte fizeram com que as matrículas de 4 a 5 anos aumentassem de 21.927, em 2009, para atuais 27.077. Segundo a Secretaria, o atendimento de 4 anos gira em torno de 80% e o de 5 anos, 90%. Estão cadastrados na lista de pretendentes apenas 997 crianças de 4 anos e 430 de 5 anos. “Nem chamamos de lista de espera, porque não são necessariamente crianças sem atendimento, já que em Belo Horizonte não é necessário fazer a matrícula por zoneamento. Existem vários casos de crianças que conseguiram a vaga em uma escola, mas fizeram inscrição na espera de outras, e o nome delas continua lá.”
Apesar do sucesso da expansão, Mayrce aponta outra dificuldade encontrada na universalização: a grande demanda pela jornada integral, que o município não consegue oferecer para todas as crianças por ter de aumentar as vagas.
Punição
A universalização da educação infantil para crianças de 4 e 5 anos, prevista pela EC 59, é obrigatória para todos os municípios. Mas, e quem não cumprir, pode responder por isso? Entre os especialistas consultados, nenhum soube dar certeza sobre as consequências para as redes que não se adequarem às exigências. “Os municípios que não cumprirem a emenda estarão tomando uma medida inconstitucional, o que é uma situação muito séria”, analisa Débora. Priscila afirma que não há punições previstas na lei. “Falam da responsabilidade, mas não do que acontece se não cumprirem”, diz. Já os municípios que possuem o convênio com o ProInfância terão os repasses congelados, pois recebem recursos para cada fase da obra. O governo federal alterou a legislação e agora as famílias também têm a obrigação de matricular as crianças.
Para coibir o descumprimento dos municípios, os Tribunais de Contas do Rio Grande do Sul e do Mato Grosso vão considerar as matrículas na pré-escola para a análise da prestação de contas, e darão um parecer desfavorável aos municípios que não tenham se adequado à emenda até 2016.
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