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A vida é o genoma de todos os demais direitos, figurando como o bem supremo do ser humano. Na sua ausência, nenhuma importância tem a liberdade, honra, propriedade ou qualquer bem, interesse ou direito.

Daí o princípio fundamental da inviolabilidade da vida. Esse superdireito tem duas faces: o direito de não ser morto e o dever de não matar. Por isso, o ordenamento jurídico (transnacional e nacional) protege a humana vitae. Sua tutela importa a todos: indivíduo, família, sociedade e Estado.

Mesmo assim, no Brasil, a vida vale pouco e é continuamente ameaçada, já que os assassinatos foram banalizados. Anualmente, mais de 50 mil vidas são, dolosamente, solapadas.

No entanto, em meio a essa carnificina, sobejam indiferença e insensibilidade na sociedade brasileira. Há notável complacência do Estado e do organismo social com essa trágica guerra civil, como se os assassinatos fossem autorizados.

Para piorar o quadro, parte relevante desses homicídios tem por vítimas mulheres (feminicídios). É a expressão máxima da violência de gênero em solo brasileiro.

A violência de gênero é destacada causa mortificante de mulheres: mais que acidentes de trânsito e cânceres. Para ter uma ideia da triste realidade, um estudo criterioso divulgado recentemente – “Mapa da Violência de 2012: Homicídios de Mulheres no Brasil”[1] – colocou o Brasil na 7ª posição de índice de feminicídios entre 84 países. Conforme a pesquisa, a taxa de homicídio no país ficou em torno de 4,4 vítimas para cada 100 mil mulheres.

El Salvador encabeça o ranking, com taxa de 10,3 vítimas para cada 100 mil mulheres. O Brasil aparece atrás apenas de Trinidad e Tobago (7,9), Guatemala (7,9), Rússia (7,1), Colômbia (6,2) e Belize (4,6). Noutra ponta, aparecem Marrocos, Egito, Bahrein, Arábia Saudita e Islândia com taxa zero.

Chama atenção o fato de 69% das mulheres-vítimas, atendidas pelo SUS – Sistema Único de Saúde brasileiro, terem sido violentadas no ambiente doméstico. Ou seja, a violência que acontece no lar é praticada por quem, supostamente, deveria amar e proteger a vítima.

Há muito tempo, John Stuart Mill[2] asseverou que “o recurso à força física por parte dos homens era, no fim do século XIX, o único resquício do tempo das cavernas que ainda resistia ao avanço da civilização”.

O mais curioso e preocupante é que passados mais de dois séculos essa brutalidade atávica ainda persiste no corpo social.

Especificamente no Brasil, a cultura machista imperante na sociedade e a falta de compromisso do Poder Público com a formulação e, consequente, execução de políticas públicas referentes à efetiva proteção das mulheres apresentam-se como principais entraves para a solução ou amenização do problema.

Desse modo, é imprescindível descer os olhos para essa problemática, uma vez que a violência contra o gênero feminino encontra-se enraizada em todas as camadas sociais.

Isso bem se nota nos casos submetidos a julgamento pelo Tribunal do Júri, importante termômetro social.

Nesse palco, a depender da cultura vigente na sociedade em que houve o feminicídio, pode-se, perfeitamente, observar a (des)afirmação dos valores inerentes ao gênero feminino. Nessa instância judicial, a sociedade moldura qual o padrão de conduta exigido ou permitido de seus membros.

Daí a importância do discurso do Ministério Público, enquanto tutor da sociedade, incumbindo-lhe reafirmar a vida como bem supremo da humanidade, independente do gênero carregado pela vítima, exaltar o Tribunal do Júri como importante mecanismo de proteção desse direito e, no caso de feminicídio, reafirmar os direitos da mulher.

Bem por isso, pode-se dizer que, em meio a essa crise civilizacional, não bastam medidas cosméticas, senão uma mudança clara de paradigma, em que todos – indivíduo, família, sociedade e Estado (na inteireza de suas instituições) –, pela via de formulação e efetivação de políticas públicas realistas e exequíveis pelo Poder Público e com o engajamento da sociedade civil, desconstruam o machismo vigente para que haja a tutela concreta dos direitos inerentes à mulher, a começar pelo respeito à sua vida.

O desafio é superar esse contexto sociocultural crítico e não simplesmente bradar o óbvio: o respeito normativo (fictício) ao ser humano, homem ou mulher. Afinal, a pura regulação jurídica (Constituição Federal, Código Penal e Lei Maria da Penha) ainda não resolveu esse grave problema.

 

 

[1] Coordenado pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz (Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais e Instituto Sangari) – vide www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_mulher.pdf.
[2] MILL, John Stuart. A sujeição das mulheres. Coimbra: Almedina, 2006, p. 13.