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Quando abria os olhos, Patrícia Silva (nome fictício), 29 anos, via um mundo que não era seu. Unida ao companheiro por três anos, sofreu com agressões constantes nos últimos dois. De ameaças, empurrões e puxões de cabelo, as ofensivas rapidamente evoluíram para tapas, socos e até pontapés.

Passados seis anos, as lembranças ainda atormentam a jovem. “Ele me batia como se não me reconhecesse, mas no outro dia já estava tudo bem. Apenas os machucados me traziam a mente de que aquele ao meu lado, de grande amor da minha vida, se tornava um monstro”, recorda Patrícia com a voz embargada.

A jovem conta que em um ano de namoro jamais notou qualquer sinal de anormalidade na relação. Mas, foi ao dividir o mesmo teto, no entanto, que percebeu que dias difíceis estavam por vir. A descoberta do vício em drogas, do até então parceiro, culminara com o início das agressões. “Fui tirar satisfação quando descobri drogas na bolsa dele. Naquele dia, ele me ameaçou e agrediu com um tapa. Nunca me esqueço, passei a noite inteira chorando. Pensava em ligar pra minha família, mas nunca o fiz. Sabia que a minha mãe ia dizer que aquilo era um briguinha de casal”, admite a jovem que até hoje nunca conversou com os parentes sobre o problema.“Acho que eles desconfiavam, mas nunca tocaram no assunto e eu também não. Sinto vergonha até hoje. Não tinha porque me submeter aquilo, mas de alguma forma era dependente dele.”, conta Patrícia

Ela virou a página com acompanhamento psicológico. “Ele chegou em casa e me espancou muito, durante dias me senti dolorida. Enquanto me batia, me xingava e foi ali que decidi que não queria aquilo pra mim. Não dormi a noite inteira, quando ele saiu para o trabalho arrumei as minhas roupas e sai de casa. Mas sozinha não tinha forças para me libertar, no mesmo dia procurei uma psicóloga para me ajudar. Sofri com a ausência dele, mas hoje estou muito bem”, diz , hoje casada e com um filho de 2 anos.

A mais recente edição do Mapa da Violência revela que o abuso contra a mulher é um problema antigo. Em trinta anos (1980 a 2010) 91.932 mulheres foram assassinadas no país, quase metade delas, 43. 486, apenas na última década. O estudo aponta ainda que até os 14 anos de idade, os pais são os principais responsáveis pela violência, papel que progressivamente vai sendo substituído pelo companheiro, ou ex, a partir dos 20 anos de idade. O campeão em violência contra a mulher no país é o Estado do Espírito Santo com 9,4 homicídios femininos para cada 100 mil mulheres. O Pará é o líder da região norte com seis homicídios para o mesmo universo.

Apesar da pouca precisão de dados sobre a questão em todo o Estado, números da Divisão Especializada de Atendimento à Mulher, localizada em Belém, registraram, apenas de janeiro a junho deste ano, 3.668 ocorrências. Boa parte delas, 1101, são queixas de lesão corporal (agressões que resultam em hematomas). Na região metropolitana de Belém, seis mulheres são agredidas a cada dia.

Por mês, a DIEAM registra em média 600 ocorrências. “A procura pelos direitos cresceu especialmente a partir da lei Maria da Penha [criada em 08 de março de 2006]. Hoje, a lei é a principal ferramenta de enfrentamento a violência doméstica familiar, mas ainda falta muito”, analisa a delegada Alessandra Jorge, diretora da DEAM. “A lei sozinha não vai resolver o problema porque o fenômeno da violência doméstica não pode ser visto apenas como caso de polícia. O problema diz respeito a políticas transversais de atendimento a mulher em todas as áreas”, avalia.

MARIA DO PARÁ

Criado há quatro anos, o Centro Maria do Pará presente hoje em Belém, Ananindeua e outros sete municípios, é responsável pelo atendimento psico social de mulheres em situação de violência. Composto por uma equipe que inclui assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, enfermeiras e psicólogas; o espaço atendeu apenas na capital quase três mil mulheres que recuperam a auto estima muitas vezes perdida em anos de agressão. “Nosso principal objetivo é empoderar a mulher na recuperação do poder de decisão. Damos orientação social para o rompimento do ciclo de violência de gênero muitas vezes imbuído de geração para geração”, afirma a coordenadora em exercício, Elisângela Tavares de Souza. “A maioria das mulheres tem vergonha da violência que sofre e isso impede a denúncia. Além da dependência econômica existe a dependência psicológica”, destaca.

O diálogo com pessoas próximas e de confiança servem para a constituição das chamadas testemunhas de informação. “A agressão física é o limite. Mas existem diferentes formas de violência, a patrimonial, a moral, a sexual e a psicológica. Essa é a mais difícil de ser combatida porque o agressor denigre a mulher de forma a deixá-la sem forças ou confiança para sair daquela situação. Mais que registrar o boletim de ocorrência é importante dar continuidade para o inquérito policial e posterior determinação de medidas protetivas”, explica a delegada Alessandra Jorge. Depois que denúncia a violência sofrida na DEAM, e presta depoimento junto com testemunhas do caso, a mulher aguarda a determinação das medidas protetivas estipuladas pela Justiça. Após notificação, o agressor que descumpre o termo estipulado pelo juiz fica sujeito a prisão.

CASOS RECENTES

Recentemente, a população ficou chocada com a notícia de dois casos de violência doméstica contra mulheres. No primeiro deles, Ellyrose Figueiredo Matos, 29 anos, foi espancada pelo marido, Rubenilson da Silva Sarmento, 37 anos. Muito ferida, ela acabou morrendo na madrugada de terça feira no Hospital Metropolitano. No outro, a dona de casa Rosângela do Socorro da Silva, 45 anos, foi encontrada amarrada e carbonizada dentro da própria casa. Embora negue, o principal suspeito pelo crime é marido, José Luiz Martins, 53 anos.

Além do requinte de crueldade, os dois casos chamam atenção para o aumento de registros do tipo no Distrito de Icoaraci, distante cerca de 18 km da capital paraense. De janeiro até a última quarta feira, a seccional do distrito contabilizava 59 flagrantes, 49 inquéritos policiais e 616 registros de boletim de ocorrência. De acordo com as estatísticas, quatro mulheres morreram vítimas de violência familiar. Duas em maio e duas em julho.

“Quando estava bom, ele era uma excelente pessoa, mas quando bebia ficava muito agressivo e batia nela com frequência. Ela se queixava muito, mas acreditava que ele ia mudar porque tinha até entrado para
a Igreja, mas a melhora durou pouco e ele voltou a beber e acabou como todo mundo viu”, conta Aldenora Santos, prima de Ellyrose referindo-se a relação conturbada da jovem com o companheiro que alegou uma possível traição da companheira como motivação para o crime. “Os homens insistem em negar a conquista do espaço da mulher que hoje não é mais aquela dona de casa que vivia submissa ao marido. Eles continuam querendo prevalecer através da força e é essa inversão de valores que precisamos mudar”, avalia a diretora da seccional de Icoaraci, Elizete Cardozo.

Nos 25 primeiros dias de julho, 91 boletins de ocorrência foram registrados. Apenas 11 resultaram em inquéritos policiais.

“Esse valor desproporcional mostra que muitas mulheres fazem a denúncia e depois somem, mas elas precisam entender que o boletim de ocorrência é apenas a notícia do crime e é por meio dele que a polícia inicia a investigação, mas, se a parte interessada não prossegue, o trabalho de apuração é impossibilitado de ser executado. A mulher não precisa esperar ser espancada para denunciar. Qualquer ameaça pode, e deve, ser denunciada”, diz a delegada.

Preso em flagrante, na tarde da última quarta feira, Marcos Aurélio Queiroz, 39 anos, vai entrar para as estatísticas. Após uma briga com a companheira, o vigilante foi surpreendido pela polícia enquanto tentava enforcá-la com o cordão da bermuda. “A gente brigava sempre e eu já estava querendo me separar, mas ela não aceitava e ficava me xingando. Não queria fazer mal pra ela, só fiz isso pra ela sair de cima de mim. Essa foi a primeira vez , antes ficava só em empurrão”, defendeu-se Marcos que se diz arrependido.

A polícia chegou até o local da prisão após a denúncia de vizinhos do casal. “Qualquer pessoa pode, e deve denunciar. Não se deve ficar omisso. Em briga de marido pode-se sim meter a colher. Não se trata de estar se metendo na vida alheia, na verdade, você pode estar evitando um crime maior”, argumenta Elizete Cardozo.