Ela é uma argentina tão famosa quanto Che Guevara. Nasceu em 15 de março de 1962 para uma campanha publicitária no diário Clarín que, contudo, rompeu o contrato. Mais tarde, quando já tinha dois anos (em 29 de setembro de 1964) que ela ganhou as páginas dos jornais, no hebdomadário Primera Plana.e, em 1965, foi para o diário Mundo, de Buenos Aires, de onde se espalhou pelos corações e mentes.
Por: Pablo Gentili
Dispunha-me a festejar o aniversário de Mafalda percorrendo páginas e portais que, nos últimos dias, recopilaram frases, tiras, desenhos, histórias desta genial criação de Quino. Dizem que Mafalda é uma das imagens que mais circulou e circula no mundo e, junto com outro ícone argentino, Che Guevara, ilustra milhões e milhões de camisetas, cadernos escolares, posters, adesivos, revistas, jornais e agendas, uma multidão iconográfica que revela admiração, respeito e a mais absoluta devoção por esta garota de cabelos rebeldes e frases de inteligência demolidora.
Dispunha-me a festeja-lo, dizia, quando topei com um dos recentes vídeos de uma excelente série produzida pela Unicef (2 Lifes: 2 Miles aparte), que apresenta um contraponto entre a vida de duas crianças separadas por duas milhas de distância, em uma mesma cidade, em uma única realidade, mas em dois mundos diferentes. A história deste novo capítulo se passa em Mumbai, Índia, onde convivem sem saber duas meninas.
Manisha é muito pobre, faz trabalhos domésticos, abandonou a escola embora talvez suspeite que foi a escola que a abandonou.
Maansi é uma entusiasmada e animada garota que ama seu colégio, pertence a uma família de classe média e como tantas outras meninas de sua idade lota seu armário de adesivos de princesas.
O vídeo constitui um contraste polifônico entre estas duas vidas pequenas nas quais se reflete um futuro de injustiças e um futuro de oportunidades.
Manisha chora. Chora quando lembra que teve que abandonar a escola, porque ela quis, porque ela não pode, porque ela teve que fazê-lo, por que nas condições em que sua família vivia não pode evitar fazer isso. Chora como chora qualquer garota, mas suas lágrimas nos pertencem a todos, molham nossas bochechas a mais de duas milhas de distância. Suas lágrimas são como as de qualquer garoto, qualquer garota. Lágrimas que partem o coração e interpelam nossa preguiçosa consciência. Quando uma garota chora, em qualquer lugar do planeta, o faz da mesma forma. Quando chora por uma injustiça, sua dor é universal.
Dispunha-me a festejar o aniversário de Mafalda, dizia. Depois de tudo, embora ela se mantenha bastante melhor que eu, temos quase a mesma idade. As lágrimas de Manisha me comoveram. Não sabia como fazer. As frases certeiras desta pequena que odeia a sopa e dialoga com sua tartaruga Democracia, atravessavam minha cabeça em busca de alguma explicação para a barbárie que significa negar a um menino, a uma menina, seus direitos.
Pensei que Manisha jamais conheceria Mafalda. E pensei que era isto o que Mafalda tanto se esforçava para nos fazer entender: as lágrimas de Manisha não podem ser derramadas em vão. As lágrimas de Manisha devem ser nosso guia, nossa energia. Negar a um pequeno o direito à palavra, o direito a escrever seu próprio nome, a ler o mundo, a contá-lo, é uma das mais brutais injustiças que ainda se perpetuam em um planeta indiferente ao sofrimento dos mais débeis.
Mafalda, esta menina que faz 50 anos, nos esporeia com sua inteligência. Sabe disso.
Como gostaria de celebrar o aniversário de Mafalda com Manisha! Seus nomes soam tão doces, tão ternos, tão parecidos!
Hoje, não entrarei em nenhuma página, nenhum portal ou jornal que lembre a Mafalda. Isto basta!
Entendi!
Mafalda vive nas lágrimas e risadas de todas as Manishas que habitam a face da terra. E é a elas que devemos todo nosso esforço e todo nosso compromisso.
Mafalda, mais uma vez, saiu com uma das suas… Não há melhor festejo do que lutar para que todos os seres humanos tenham direito à palavra. Não há melhor forma de festejar do que lutar pela comunhão da esperança, onde homens e mulheres se aninhem no compromisso de fazer com que as lágrimas de Manisha não nos sejam indiferentes.
Festejemos este aniversário construindo um mundo onde seja possível, como certa vez recordou Gianni Rodadi, “o uso total da palavra para todos. Não para que todos sejam artistas, mas para que ninguém seja escravo”.
(Desde o Rio de Janeiro)
(*) O argentino Pablo Gentili, de Buenos Aires, é professor e pesquisador social no Rio de Janeiro e escreveu vários livros sobre reformas educacionais na América Latina. Foi um dos fundadores do Fórum Social da Educação, iniciativa do Fórum Social Mundial. Atualmente é Secretário Executivo adjunto do Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (CLACSO) e diretor da Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (FLACSO, Sede Brasil).
Fonte: El País
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