Intelectuais e familiares veem embate político sobre papel da comissão longe de acabar
Principal convidada para o debate “Direitos Humanos, Justiça e Memória”, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a filósofa e professora Marilena Chauí afirmou que o resgate da memória dos anos da ditadura deverá reescrever a história do país, segundo a visão da sociedade, em vez de mantida como a visão do Estado. As declarações foram dadas na noite da segunda-feira (21), no primeiro de uma série de debates sobre o tema organizado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), previstos também para acontecer em São Paulo, Porto Alegre e Brasília.
Chauí citou o filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) e lembrou que “a história oficial é a história dos vencedores”. Reverter essa perspectiva, segundo ela, é tarefa fundamental para a Comissão da Verdade. “É preciso escovar a história a contrapelo e fazer a ‘história dos vencidos’. Esse é o papel da memória, e ela só pode cumprir esse papel se aquilo que ela vai narrar é de fato o que a sociedade fez e faz. A história do vencedor, e isso é típico no caso do Brasil, é a história do Estado. Tanto é assim que a história do Brasil é periodizada de acordo com as formas que o Estado brasileiro assumiu ao longo do tempo. Ao contar a história do Brasil como história do Estado brasileiro, se omite o lugar onde efetivamente a história acontece, que é na sociedade.”
Por isso, segundo Marilena, é preciso fazer com que a criação da Comissão da Verdade represente a possibilidade concreta de criação de uma nova narrativa: “A comissão será um desastre se nós deixarmos que ela seja apenas uma ação do Estado. Ela só será efetiva se for uma ação da sociedade. Cabe ao Estado, se o governo tem pretensões democráticas, dar uma figura institucional e legal a uma exigência que o contrapoder social faz. É assim que eu vejo a Comissão da Verdade. Ela nasce da decisão do Estado de levar em conta o contrapoder social que exigiu que ela fosse criada, dentro das circunstâncias que nós sabemos quais são”.
A percepção de que se inicia uma nova fase de embate político no que concerne à revelação dos crimes ocorridos no período da ditadura militar é compartilhada pelo sociólogo e professor Emir Sader: “Quem esteve no Palácio (na cerimônia de sanção pela presidenta Dilma do projeto de lei que criou a Comissão da Verdade, na semana passada) percebeu que a luta continua sob outras formas.
A primeira disputa, disse o sociólogo, é pela composição da comissão: “É preciso saber quem vai estar lá, e essa disputa se dá também na opinião pública. A parte mais violenta da nossa ditadura ocorreu há muito tempo, então é preciso aumentar o interesse das gerações mais novas por esse tema. O fundamental é a narrativa, a descrição, a análise, o estabelecimento da versão oficial do Estado brasileiro sobre o que aconteceu naquele período”.
Dois demônios
A decisão do governo de cancelar o discurso de Vera Rubens Paiva, representante dos familiares dos mortos pela ditadura, cuja fala estava prevista na cerimônia de sanção da Lei de Acesso à Informação Pública e da lei que cria a Comissão da Verdade foi alvo de críticas durante o evento – ela foi vetada por pressão dos representantes das Forças Armadas presentes à cerimônia.
Integrante do Comitê pela Verdade, Memória e Justiça e ex-exilada política, Iara Xavier Pereira, que perdeu dois irmãos e o marido, assassinados pela ditadura em São Paulo nos anos de 1972 e 1973, manifestou a preocupação dos familiares dos mortos e desaparecidos com aquilo que classifica como o primeiro embate político no âmbito da Comissão da Verdade.
“Saímos do Palácio muito preocupados porque o comando das forças militares proibiu que Vera, a familiar que iria falar em nosso nome e é filha do ex-deputado Rubens Paiva, tivesse a palavra. Entendemos a correlação de forças, mas esse episódio reforçou a necessidade de que a sociedade brasileira esteja atenta para que não nos empurrem goela abaixo uma comissão da meia-verdade assim como já empurraram uma lei de anistia parcial”, disse.
Iara disse que luta pela criação da Comissão da Verdade há 32 anos, “sempre em busca de saber quando, onde, como e, acima de tudo, quem seqüestrou, assassinou e desapareceu com os restos mortais” dos seus familiares.
Agora, diz saber que uma nova etapa da luta está começando. “Nós esperamos que seja de fato uma comissão soberana e independente. Essa é uma luta árdua, pois essa memória foi sonegada à sociedade brasileira. Nós não queremos nos contentar com uma comissão possível. Nós queremos uma Comissão da Verdade que seja da verdade mesmo.”
Na visão de Sader, o que aconteceu realmente em relação a Vera Paiva foi um veto. “Se um familiar falasse, um militar também teria que falar. É como aquela teoria, difundida na Argentina, dos chamados ‘dois demônios’ que sustenta que foram dois campos que se enfrentaram, usando arbitrariamente a violência um contra o outro”.
Para o intelectual, os setores que pressionaram para que a fala da ativista fosse retirada da cerimônia realizada no dia 18 de novembro sabem bem o que estão fazendo. “Essa postura dos ‘dois demônios’ desqualifica a ideia de que o que houve em 1964 foi um atentado de forças golpistas contra a democracia no Brasil. O que aconteceu no Palácio nos dá uma ideia da luta prolongada que ainda teremos pela frente. A Comissão da Verdade foi um espaço conquistado por nós. É um espaço de disputa e temos que ampliá-lo.”
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